O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, havia interrompido na semana passada o julgamento sobre a constitucionalidade do cláusula 19 do Marco Social da Internet, que prevê responsabilização de provedores de mídias sociais exclusivamente se eles não apagarem conteúdos cuja remoção tenha sido determinada pela Justiça. Com isso, ele manifestou a intenção de “passar na frente” dos colegas, já que normalmente o presidente vota por último, e gerou a expectativa de um voto que atenuasse o liberticídio proposto pelos relatores Dias Toffoli e Luiz Fux. A previsão acabou se confirmando de maneira parcial nesta quarta-feira, já que Barroso até segmento de premissas razoáveis, mas no termo acaba fazendo muito pouco de prático para virar a tendência de glorificação da repreensão no Brasil.
Barroso não liberou a divulgação do voto propriamente dito, mas do que chamou de “anotações para voto oral”, nas quais manifesta suas divergências em relação aos votos de Toffoli e Fux. Barroso diz que a regra do cláusula 19 deve continuar a ser o padrão “em muitas situações” (embora mais adiante, uma vez que veremos, irá contrariar o próprio argumento), e nas anotações Barroso escreveu que “conteúdos relacionados à honra, ainda que se alegue que representem crimes de injúria, calúnia ou difamação, devem permanecer sob o regime do artigo 19 do Marco Civil da Internet, sob pena de violação à liberdade de expressão”, dando um exemplo simples do que aconteceria se a tese de Toffoli e Fux prevalecer: “se alguém disser que o governador é burro, a plataforma teria de retirar a postagem, apenas mediante notificação privada”.
O voto de Barroso estabelece um regime de repreensão que não difere muito daquele desejado por Toffoli e Fux
Barroso fez ainda uma série de outras ponderações bastante razoáveis, uma vez que sua resguardo da liberdade de sentença e a constatação de que o monitoramento ativo de tudo o que é publicado nas mídias sociais é impraticável. “Não se deve impor às plataformas o controle prévio de todos os conteúdos gerados por terceiros, nem as sujeitar a uma obrigação geral de vigilância”, escreve o ministro, afirmando ainda que “não é possível, portanto, o controle editorial individual e humano sobre tudo o que é lançado on-line”, e concluindo que “em todas as situações em que não haja certeza positiva da ilegalidade, em que exista dúvida razoável acerca da legitimidade ou não do conteúdo, deve caber mesmo ao Poder Judiciário dirimir a controvérsia”.
Se Barroso tivesse parado por aqui, no sumo afirmando que o legislador deveria ampliar as exceções à regra do cláusula 19 do Marco Social da Internet para contemplar outros casos – uma vez que a própria Publicação já sugeriu recentemente –, seria um voto meritório. Mas o presidente do STF não resistiu à tentação do ativismo, contrariando inclusive as premissas que havia estabelecido. Barroso também defendeu a adoção do “dever de cuidado”, mas o definiu de forma dissemelhante do noção mais consagrado (o de monitoramento ativo com remoção imediata de conteúdos que o provedor considerar problemáticos), afirmando que “se impõe às plataformas um dever de cuidado – não de responsabilização objetiva –, em que a responsabilização se dá, não por erros ocasionais, mas como punição por falhas sistêmicas, e não por erros pontuais”, mas sem elaborar muito sobre o que seria uma “falha sistêmica”. Os conteúdos que Barroso pretende incluir nesta modalidade estão pornografia infantil e crimes graves contra crianças e adolescentes; persuasão, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação; tráfico de pessoas; atos de terrorismo; e supressão violenta do Estado Democrático de Recta e golpe de Estado – e, assim uma vez que fizera Toffoli, Barroso também ignorou que alguns desses crimes (uma vez que terrorismo e golpe de Estado) não têm uma vez que ser cometidos pelas redes sociais.
O ministro não parou por aí: afirmou que para todos os demais crimes, com exceção dos crimes contra a honra, deveria valer o padrão de “notice and takedown”, em que basta uma notificação extrajudicial sobre teor potencialmente ilícito para que haja responsabilização do provedor. “A exceção do artigo 21 do Marco Civil da Internet [que hoje prevê o notice and takedown para a “pornografia de vingança” e violações de recta autoral] deve compreender também crimes em universal, com exceção dos crimes contra a honra”, escreveu Barroso. As consequências desse padrão são óbvias, e já foram explicadas repetidamente neste espaço: totalidade incentivo à repreensão, e nenhum incentivo à proteção da liberdade de sentença. De zero adiantam as ressalvas feitas pelo ministro, segundo as quais os provedores podem “se eximir de culpa quando: conferir interpretação razoável no sentido de que o conteúdo objeto da notificação não constitui crime”, e que “em caso de dúvida razoável, os provedores não poderão ser responsabilizados civilmente pela ilicitude dos conteúdos, nem tampouco quando a verificação da ilicitude depender de avaliação contextual não factível no âmbito da prestação do serviço”. A tendência inevitável é a de remoção de todo teor notificado, até porque não há previsão alguma de punição aos provedores que derrubarem publicações posteriormente consideradas lícitas em um processo judicial.
Em resumo, a regra do cláusula 19 vira a exceção, valendo exclusivamente para os crimes contra a honra, enquanto para todo o resto se prescinde da estudo do Judiciário. Com isso, será estabelecido um regime de repreensão que não difere muito daquele desejado por Toffoli e Fux, já que todo o restante, inclusive críticas a comportamentos, o “discurso de ódio” e as críticas a instituições ou autoridades que elas considerem “antidemocráticas”, estará sujeito a remoção sumária, seja por ação das próprias plataformas, seja por iniciativa de grupos militantes dedicados a vigiar as mídias sociais à caça de publicações que lhes desagradem. E de pouco adianta o apelo de Barroso para que o Congresso resolva a questão por meio de legislação que altere o Marco Social da Internet, pois, a julgar pelas suas palavras, qualquer mudança que não contemple exatamente a posição defendida pelo ministro corre o risco de ser declarada inconstitucional.
Quem julgava que Barroso, com seu pedido para antecipar seu voto, pudesse conduzir o julgamento para um desfecho favorável à liberdade de sentença tem todos os motivos para se decepcionar, já que não foi isso o que ocorreu. Boas premissas acabaram soterradas por regras práticas ainda bastante ruins, que só podem ser consideradas um progressão em termos relativos, pois as propostas de Fux e Toffoli são ainda piores. O julgamento, agora, só será retomado depois o recesso do Judiciário, pois André Mendonça também pediu vista; seguimos à espera de qualquer ministro que tenha a coragem de tutorar a liberdade de sentença uma vez que ela deve ser defendida.