Basta olhar para os resultados das eleições municipais deste ano para perceber que a destinação de emendas parlamentares determina os resultados eleitorais. Entre os 116 prefeitos mais beneficiados com emendas parlamentares nos últimos anos, 98% foram reeleitos, contra a média pátrio de reeleição, que foi de 85%. Esse oferecido demonstra o que qualquer cidadão que está no interno do Brasil em período eleitoral já sabe: as emendas parlamentares, por meio das quais os deputados e senadores destinam recursos do orçamento público diretamente para os municípios que quiserem, é um instrumento das elites políticas para manter seus currais eleitorais, em uma prática institucionalizada de clientelismo.
É evidente que esse efeito provocado pelas emendas parlamentares nas eleições não é de hoje. Ainda em 2015, Sérgio Firpo, atual secretário de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas e Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento e Orçamento, publicou um estudo demonstrando a força política das emendas parlamentares. O que mudou de lá pra cá foi o volume de recursos em posse dos deputados federais e senadores e a impositividade da realização de algumas das emendas parlamentares. Um estudo recente de Marcos Mendes, Fabio Giambiagi e Paulo Hartung destaca que as emendas somavam 32% das despesas discricionárias do orçamento em 2023, totalizando R$118 bilhões, o suficiente para resguardar metade do orçamento federalista da saúde naquele ano.
As emendas parlamentares se tornaram uma instrumento de submissão do Executivo ao Legislativo com a distribuição de recursos públicos sem transparência e de harmonia com a vontade e os interesses individuais de deputados e senadores influentes em Brasília
O argumento de que emendas parlamentares são secção importante da construção do jogo democrático brasiliano não se sustenta. Os recursos não são uniformemente distribuídos, e nem mesmo os parlamentares são capazes de inspeccionar as decisões de seus pares. Aliás, possibilitam a conquista dos recursos públicos pelos parlamentares para fazerem valer seus interesses em suas bases eleitorais, sem avaliação de prioridades para o país ou até mesmo para a região.
Em resumo, ao invés de o governo planejar e promover políticas públicas de Estado, com base em critérios técnicos, dados e evidências empíricas, é obrigado a partilhar o orçamento no varejo, em doses homeopáticas para diversos municípios, ficando incapaz de combater os problemas crônicos e estruturais do país.
Nesse cenário, a solução encontrada pelo Executivo para continuar com sua agenda de investimentos foi ele mesmo “passar o chapéu” e promover suas políticas utilizando as emendas parlamentares, o que o coloca em posição de submissão ao Legislativo ou a grupos de parlamentares que exercem, logo, grande influência no governo.
Mais uma vez, o Brasil vai na contramão do mundo desenvolvido. Um estudo comparativo recente de Marcos Mendes e Hélio Tollini verifica que a intensidade da interferência do Legislativo brasiliano no orçamento público é muito superior à de países da OCDE, nos quais os congressistas não têm, nem de perto, o poder para modificar o orçamento que vemos no caso brasiliano. Até mesmo a forma de realização das emendas no Brasil é irregular. Na OCDE, há parlamentos dedicados a debater prioridades e a qualidade das políticas públicas, sendo obrigados a identificar de onde será cortada a verba em caso de propostas de emendas ao orçamento. No Brasil, o Legislativo pode até mesmo escolher as prioridades de pagamentos do governo, inserindo emendas em despesas primárias, sem qualquer preocupação com a eficiência no uso dos recursos.
É verdade que o Brasil nunca foi um exemplo quando o objecto é institucionalidade. Não somos um país reconhecido por uma grande capacidade de governo ou pelo irrestrito reverência às instituições democráticas. Desde os primeiros dias da nossa independência convivemos com o clientelismo e o coronelismo, expressões do patrimonialismo brasiliano com a conquista de bens e recursos públicos pelos interesses privados de nossas elites políticas.
Porém, também é verdade que até a dezena passada vivíamos um ordenado aprimoramento das nossas instituições. Os Poderes da República foram capazes de dar respostas às mais graves crises institucionais da história recente: a prisão de políticos e empresários em razão do maior escândalo de depravação da história da humanidade, um impeachment, o combate ao nepotismo no setor público e o aumento da transparência na gestão pública são unicamente alguns exemplos.
Nos últimos anos estamos apáticos aos ataques constantes à democracia liberal, vendo nossos valores cívicos e nossas instituições serem desmanteladas. Se, há quase 20 anos, assistimos aos princípios fundamentais da República serem destruídos pelo governo Lula com a compra do Legislativo pelo Executivo por meio do Mensalão, hoje observamos o mecanismo inverso.
As emendas parlamentares se tornaram uma instrumento de submissão do Executivo ao Legislativo com a distribuição de recursos públicos sem transparência e de harmonia com a vontade e os interesses individuais de deputados e senadores influentes em Brasília. E assim, o Brasil do horizonte parece ser o da manipulação eleitoral, do combate à renovação política à custa do tesouro, da depravação e da ineficiência da emprego dos altos impostos arrecadados.
Se os brasileiros realmente querem enfrentar as profundas mazelas do país, é preciso renovar o pacto social, começando pelo enfrentamento do clientelismo com o orçamento público, o que passa pelo término das emendas parlamentares.
Vitor Beux Martins, jurisperito, é líder de políticas públicas do Instituto Libertas; Rafael Mendonça é exegeta de Políticas Públicas do Instituto Libertas.
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