Uma simples modificação na letra de uma melodia, sem nenhum tipo de ofensa, está sendo indevidamente transformada em prova de preconceito religioso. Dias detrás, a Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa do Ministério Público do Estado da Bahia abriu sindicância contra Cláudia Leitte por preconceito religioso porque, em seus shows, ela inclui uma melodia do repertório da filarmónica Babado Novo, da qual ela fez segmento, trocando uma referência a Iemanjá por uma menção a Jesus Cristo – a cantora se tornou evangélica anos detrás.
Ao menos desde 2014, considerando registros em vídeo e um DVD da cantora lançado naquele ano, Cláudia Leitte troca o verso “saudando a rainha Iemanjá” por “eu canto meu rei Yeshua” (Yeshua é o nome de Jesus em hebreu) ao trovar Caranguejo. No carnaval deste ano, gravações antigas já tinham sido usadas para criticar a cantora, mas só agora houve interferência das autoridades: em seguida a artista repetir a prática de mudar a letra em um show no último dia 14, a iyalorixá Jaciara Ribeiro e o Instituto de Resguardo dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro) acionaram o MP-BA contra Cláudia Leitte, resultando na orifício do sindicância para investigar suposto “ato de racismo religioso consistente na violação de bem cultural e de direitos das comunidades religiosas de matriz africana”; a depender do resultado da investigação, a cantora poderia ser até mesmo responsabilizada criminalmente.
A banalização da ideia de “racismo religioso” promovida pelo MP baiano ao usar indevidamente o braço estatal para investigar uma troca de letra de música, sem nenhum incentivo ao desrespeito às religiões afro-brasileiras, é um enorme desserviço à superior e necessária pretexto do combate ao preconceito
O surrealismo dos argumentos para essa orifício de sindicância é evidente. Uma vez que a substituição da referência por Iemanjá a uma menção a Jesus poderia configurar “racismo religioso”? Houve, talvez, desrespeito a entidades consideradas sagradas pelas religiões afro-brasileiras? A cantora manifestou a intenção de agredir, humilhar ou menosprezar as confissões de matriz africana? Houve qualquer incitamento para que os ouvintes passassem a desrespeitar os praticantes, ministros ou divindades dessas religiões? Existe qualquer “direito”, de qualquer fé religiosa, a que seus deuses, santos ou o que quer que seja considerado sagrado por ela sejam mencionados em obras de arte? Se Cláudia Leitte, devido à sua fé cristã evangélica, considera inapropriado trovar “joga flores no mar / Saudando a rainha Iemanjá”, ela não tem o recta à liberdade de consciência?
As respostas a essas questões são muito simples: não há um único cláusula da Lei do Racismo (7.716/89) que possa ser violado por uma troca em uma letra de música; não há porquê invocar nem mesmo o cláusula 20, que considera transgressão “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Tampouco há porquê utilizar o cláusula 208 do Código Penal, que proíbe, entre outros atos, a ação de “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”, já que Cláudia Leitte não faz zero disso em relação a Iemanjá; a substituição tem o mero objetivo de exaltar alguém que a fé da cantora considera sagrado. Essas constatações bastante óbvias deveriam satisfazer para distanciar qualquer denunciação de intolerância religiosa contra a cantora, porquê explicaram diversos especialistas ouvidos pela Publicação do Povo.
Isso não significa que a substituição não possa acarretar problemas para a cantora, mas em outra esfera. Caranguejo não é uma melodia composta por Cláudia Leitte, mas por Alan Moraes, Durval Luz e Luciano Pinto, ex-integrantes do Babado Novo, que a escreveram em 2004. Se a modificação os incomoda, eles poderiam conseguir na Justiça que Cláudia Leitte parasse de cantá-la, atendo-se à letra original ou simplesmente retirando a melodia do repertório dos seus shows. A disputa jurídica contra Cláudia Leitte, portanto, só poderia se dar no campo da propriedade intelectual, e não no campo do racismo ou do preconceito, muito menos com consequências do ponto de vista criminal, que zero mais seriam que uma violação gravíssima das liberdades religiosa e de consciência da cantora.
Se o paradoxal de se investigar alguém por uma inofensiva mudança em uma letra de música é evidente mesmo a alguém sem relação alguma com o mundo do recta, porquê é verosímil que um pouco assim esteja, de roupa, acontecendo? Ninguém pode impedir que qualquer ministro religioso ou entidade ligada às religiões afrobrasileiras procure o MP, mas, por outro lado, nenhum promotor é obrigado a levar o caso adiante. Qualquer domínio minimamente razoável e consciente do valor das liberdades perceberia de inopino que, no caso de Cláudia Leitte, a queixa de racismo religiosos não procede, e que não seria nem mesmo o caso de transfixar investigação. Se o faz, revela, na mais benigna das hipóteses, um ignorância da lei tão patente que desqualificaria aquela pessoa para o trabalho no Ministério Público; na pior das hipóteses, estaríamos diante de puro e simples agravo de domínio por segmento de uma fileira militante do MP, que usa o função para fazer progredir as próprias convicções, e não para tutorar a sociedade.
O preconceito religioso é uma questão real e as confissões de matriz africana estão hoje entre as mais atacadas no Brasil, porquê muito demonstram os casos de ruína de terreiros e ameaças a ministros do candomblé e da umbanda. No entanto, a banalização da teoria de “racismo religioso” promovida pelo MP baiano ao usar indevidamente o braço estatal para investigar uma troca de letra de música, sem nenhum incentivo ao desrespeito às religiões afro-brasileiras, é um enorme desserviço à superior e necessária pretexto do combate ao preconceito. Quanto mais essa missiva é jogada de forma equivocada, mais difícil será dar credibilidade aos órgãos de investigação quando eles estiverem de roupa atacando casos reais de intolerância religiosa.