Os propagandistas do Kremlin não teriam feito melhor. Na quarta-feira, o presidente norte-americano, Donald Trump, deu ainda mais razões para todos os que se preocupam com o futuro da Ucrânia – e, por extensão, do mundo livre – em uma publicação na rede Truth Social na qual, entre outras alegações infundadas, chamou de “ditador” o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky; em outras declarações, feitas a repórteres, Trump ainda acusou os ucranianos de terem provocado a invasão russa, que completa três anos na próxima segunda-feira.
A enxurrada de ataques veio na sequência de um encontro, realizado na Arábia Saudita, entre delegações chefiadas pelo secretário de Estado norte-americano, Marco Rubio, e pelo chanceler russo, Sergey Lavrov. Oficialmente, a reunião serviu para tratar de interesses dos dois países, cuja relação está estremecida desde a invasão da Ucrânia, mas Rubio admitiu que as negociações para o fim da guerra também estiveram na pauta, ainda que de forma muito embrionária.
Zelensky, com razão, não gostou de ver a situação de seu país sendo discutida sem sua participação – algo assim só faria sentido se os Estados Unidos estivessem buscando russos e ucranianos separadamente para ouvir suas demandas antes de iniciarem as negociações, mas não há previsão de nenhum encontro semelhante entre Rubio e a chancelaria ucraniana. Só o que há até o momento é a ida à Ucrânia de Keith Kellogg, o general da reserva escolhido como representante especial do governo dos EUA para lidar com o conflito e que chegou a Kyiv na quarta-feira.
Que o presidente norte-americano inverta de forma tão acintosa a culpa pela guerra, que é única e exclusivamente de Vladimir Putin, é algo tremendamente escandaloso
Com ainda mais razão, o presidente ucraniano reagiu às falas de Trump afirmando que ele estava “preso em uma bolha de desinformação”. De fato, talvez a única verdade em tudo o que o presidente norte-americano disse recentemente seja o fato de que a Ucrânia está sob lei marcial, e por isso não realizou as eleições que deveriam ter ocorrido no ano passado, já que o mandato de Zelensky se encerraria em maio de 2024. No entanto, além do fato óbvio de que seria impossível realizar eleições normais com o país invadido e parte substancial da população fora de suas casas, Trump também ignora que a prorrogação do mandato presidencial sob lei marcial está prevista na legislação ucraniana sobre o tema (que data de 2015); para que não houvesse dúvida a esse respeito, em novembro de 2023 todos os partidos do país, incluindo os da oposição, concordaram que Zelensky permaneceria na presidência enquanto durasse a guerra.
Trump também inflou o tamanho da ajuda norte-americana à Ucrânia, falando em US$ 350 bilhões quando a soma de todos os pacotes de ajuda aprovados pelo Congresso norte-americano corresponde a cerca de metade deste valor – e ao menos parte desse dinheiro foi usada nos próprios Estados Unidos, pela aquisição de armas que foram depois enviadas à Ucrânia. O presidente norte-americano ainda distorceu uma fala de Zelensky, dando a entender que o ucraniano havia dito que não sabia o destino de metade do dinheiro norte-americano – Zelensky havia feito um comentário sobre nem toda a ajuda vir na forma de dinheiro entregue diretamente ao governo ucraniano, algo corroborado por especialistas e think tanks ocidentais que acompanham a guerra.
Por fim, resta a absurda alegação, feita a repórteres na Flórida ainda na terça-feira, de que Zelensky havia começado a guerra. “Você nunca deveria ter começado (a guerra). Você podia ter feito um acordo”, disse, em resposta às críticas de Zelensky por estar sendo colocado de lado nas conversas entre EUA e Rússia. Que um presidente norte-americano, que se propõe a ser um negociador qualificado para encerrar um conflito, inverta de forma tão acintosa a culpa pela guerra, que é única e exclusivamente de Vladimir Putin e seu imperialismo, é algo tremendamente escandaloso.
“Não devemos trair a fé daqueles que estão arriscando suas vidas (…) para desafiar a agressão apoiada pelos soviéticos”, disse, em 1985, o então presidente norte-americano Ronald Reagan, um ícone do Partido Republicano. Mas é exatamente isso o que Trump parece estar fazendo com suas palavras. Quando compra integralmente as alegações de Putin – este, sim, o verdadeiro ditador e criminoso de guerra, herdeiro direto dos soviéticos que Reagan tanto se esforçou para derrotar – e transforma uma guerra da qual depende o futuro das democracias em oportunidade de negócios, reivindicando que a Ucrânia “pague” a ajuda norte-americana entregando suas jazidas de minerais raros, Trump trai a fé dos ucranianos.
Dias atrás, alertamos para o fato de que Trump poderia entrar para a história não como o Winston Churchill cujo busto ele colocou na Casa Branca, mas como o Neville Chamberlain que tentou apaziguar Hitler e conseguiu uma “paz para o nosso tempo” que não durou nem um ano. As mensagens de Trump, no entanto, permitem fazer uma comparação ainda mais sombria e perigosa para o futuro do mundo: em agosto de 1939, os chanceleres da Alemanha nazista e da União Soviética stalinista assinaram o Pacto Molotov-Ribbentropp, em que dividiram a Polônia ao meio, à revelia dos poloneses – no mês seguinte, os dois países iniciavam suas invasões. Agora, Putin fica com o território e Trump, com os minérios; uma diferença pequena para o tamanho da imoralidade que se desenha.