A moção de suspeição contra o primeiro-ministro Michel Barnier, aprovada pela Reunião Pátrio (AN) francesa em 4 de dezembro, resultou no rompimento da frágil coalizão parlamentar que governava a França desde setembro último e demonstrou ao mundo a disfuncionalidade do protótipo semipresidencialista adotado pela 5ª República Francesa, instituída pelo marechal Charles de Gaulle em 1958.
Trata-se da maior crise de governo vivida por aquele país desde a moção de suspeição aprovada pela AN contra o primeiro-ministro Georges Pompidou, em 1962, que levou à rescisão da AN pelo logo presidente de Gaulle, à convocação de novas eleições e à formação de maioria gaullista no Legislativo, assim permitindo a permanência de Pompidou no função até 1968, de onde saiu para ser eleito presidente da República no ano seguinte.
O presidente Emmanuel Macron, todavia, encontra-se em situação muito distinta daquela em que de Gaulle se encontrava em 1962. Por um lado, o atual patrão de Estado francesismo, tal qual segundo (e último) procuração termina em maio de 2027, está legalmente impedido de dissolver a Reunião Pátrio e convocar novas eleições legislativas antes de julho de 2025, pois, fundamentado em avaliação de cenário desconectada da verdade, cometeu o erro estratégico de dissolver a legislatura no primeiro semestre deste ano, em seguida vitória da direita nas eleições europeias, e convocar eleições realizadas em 30 de junho e 7 de julho, na crença equivocada de que esse movimento político poderia lhe prometer maioria no parlamento.
Por outro, caso, hipoteticamente, pudesse convocá-las, decerto obteria forma parlamentar ainda mais desfavorável do que a atual, devido a seus crescentes níveis de impopularidade e isolamento político. Macron indicou que não renunciará ao procuração e sugeriu, indiretamente, não possuir porquê calcular, no atual momento, a viabilidade política de novas eleições legislativas em junho de 2025. Tampouco há transparência quanto a nomes que o presidente poderá indicar para substituir Barnier (na França, a indicação ao função de primeiro-ministro é cultura privativa do presidente da República).
O protótipo semipresidencialista instituído pela Constituição francesa de 1958 padece de algumas disfuncionalidades cujos resultados, e não necessariamente os procedimentos, lembram o presidencialismo de coalizão brasiliano, possibilitado – e não instituído – pela Constituição Federalista de 1988. No entanto, o protótipo brasiliano foi acrescido, a partir de 2019, de uma função, constitucionalmente inexistente, que não somente atribuiu ao Supremo Tribunal Federalista o papel de força política que ora age em prol do governo de vez, ora contra, mas também lhe permitiu se autoatribuir as prerrogativas de treinar o Poder Legislativo e o Executivo, alguma coisa que não existe em nenhuma país que se pretenda minimamente civilizada.
Na França, os amplos poderes à disposição do presidente da República e o esvaziamento das competências legislativas (comparativamente às constituições do país desde o chegada da 3ª República, instituída em 1871, em seguida a roteiro francesa na Guerra Franco-Prussiana) conduzem ao questionamento da relevância de se separar a chefia de Estado (presidente da República) da chefia de governo (primeiro-ministro), quando se considera que a indicação deste corresponde material e formalmente àquele.
Leste argumento sustenta que, se perfaz cultura constitucional do presidente da República indicar o primeiro-ministro sem que tal indicação resulte da formação de maioria parlamentar eleita, o desmembramento entre chefia de Estado e chefia de governo na França inverte a lógica observada nas repúblicas e monarquias parlamentares europeias, nas quais os chefes de Estado (monarcas e presidentes) detêm funções em ampla medidas cerimoniais, enquanto os chefes de governo (primeiros-ministros e, na Alemanha e na Áustria, chanceleres federais) exercem as competências de transporte dos assuntos governamentais. O presidente da República Francesa seria, na prática, tanto o patrão de Estado quanto o de governo, correspondendo ao primeiro-ministro funções fictícias de transporte do governo.
O sistema francesismo contém, assim, mais que mera inconsistência de organização política, pois provavelmente permitirá, desde a perspectiva do Poder Executivo, a permanência, pelos próximos 23 meses, de um presidente da República tal qual escora foi essencialmente eliminado nas eleições legislativas de junho e julho últimos, sobrevivendo por meio de um espectro postiço entre setembro e dezembro deste ano, no governo “chefiado” por Michel Barnier, O Breve.
Da perspectiva do Legislativo, a fragilidade de um sistema partidário pulverizado, incapaz de formar coalizões minimamente sólidas, é atestada pelo caráter essencial do tema que levou à queda do primeiro-ministro: a votação do orçamento francesismo para 2025. Se uma coalizão parlamentar vota uma moção de suspeição contra o primeiro-ministro por ter oriente tentado resolver o impasse que obstrui a votação do orçamento de 2025, é razoável pressupor que tal coalizão não reúne condições para servir de sustentação ao governo.
A expectativa, portanto, é que a falta de escora político do presidente da República e a impossibilidade de formação de uma coalizão funcional na Reunião Pátrio resultem em uma espécie de “governo vegetativo” na França pelo menos até que novas eleições legislativas, a partir de julho de 2025, potencialmente permitam forma parlamentar favorável ou contrária a Emmanuel Macron. É importante realçar a possibilidade de que novo pleito tenha distribuição de assentos muito similar à atual, o que faria com o que o atual impasse persistisse até a eleição presidencial de abril de 2027.
Por outro lado, o presidencialismo de coalizão brasiliano, materializado plenamente na gestão Lula 3, posto que ora resulte em um governo frágil, cuja agenda propositiva visa – exclusiva e precisamente – a fornecer-lhe qualquer escora, sem um projeto mínimo de País para além da ocupação dos espaços do Estado, padece de males em certa medida similares aos do semipresidencialismo francesismo, se muito que por caminhos diferentes.
Uma vez que no Brasil não há separação entre chefias de Estado e de governo (ambas concentradas no presidente da República) e a nossa estrutura pseudofederativa não atua porquê um elemento restritivo à expansão dos poderes do governo federalista, seria lógico que o papel de contra-arrestar o presidente e seu governo correspondesse à oposição parlamentar.
Em termos formais, não se trata de uma teorema politicamente difícil, já que os poderes atribuídos ao presidente da República pela Constituição Federalista brasileira de 1988 são consideravelmente inferiores àqueles previstos pela Constituição francesa de 1958 ao presidente daquele país.
No entanto, a inexistência da separação entre as chefias de Estado e de governo inviabiliza, em termos práticos, a formação de um novo governo antes do término do procuração do presidente, já que a única via de remoção deste do função, o impeachment, é um instituto não somente politicamente multíplice porquê também traumático e sujeito à onipresente ação do STF.
Em circunstâncias normais, o resultado, no presidencialismo de coalizão brasiliano, de um governo politicamente inviável, seria muito próximo ao de um presidente francesismo sem escora parlamentar, qual seja um inerte. Em 2019, todavia, surgiu no Brasil uma anomalia jurídica que permite ao STF, por meio de decisões colegiadas ou monocráticas, assumir funções legiferantes que podem tanto contrariar o governo de vez quanto favorecê-lo.
aqui enfatizo não se tratar de uma função jurisdicional, porquê deveria corresponder a uma galanteio porquê o STF, mas de uma fundamental e operacionalmente legiferante, que, no Brasil, corresponde constitucionalmente ao Congresso Pátrio.
Esse expediente sem previsão lítico tem permitido, desde 2023, a viabilização política de um governo sem projeto vernáculo ou base parlamentar por meio da substituição do escora congressual por um Supremo Tribunal Federalista disposto a legislar em obséquio do governo e a atropelar o Poder Legislativo. Trocando em miúdos: à falta de escora parlamentar ao governo, o STF faz às vezes de maioria parlamentar governista no Congresso. À luz de uma perspectiva formal e procedimental, essa substituição, posto que tire o governo de um Estado vegetativo, o faz ao calefrio da democracia e por meio da instauração da instabilidade e da incerteza jurídicas.
As comparações feitas entre o Brasil e a França neste item levam em conta as diferenças fundamentais entre os nossos principais desafios – políticos, sociais, econômicos e jurídicos, sem prejuízo de outros domínios – e aqueles enfrentados pelo país europeu.
Tampouco se ignoram as circunstâncias históricas, elas também fundamentalmente distintas, conducentes às constituições brasileira de 1988 e francesa de 1958: enquanto a nossa Epístola Magna, elaborada e aprovada por uma Reunião Pátrio Constituinte, buscou botar as bases da ordem democrática da Novidade República (1985 -) em seguida 21 anos de regime militar, o documento francesismo foi elaborado por Michel Debré (primeiro-ministro entre 1959 e 1962) e grupo restrito de juristas, no contexto de crise institucional, deflagrada pelo processo de independência da Argélia, que ameaçava lançar a França em guerra social, e foi aprovada por referendo.
Essas disfuncionalidades lançam um cone de sombras sobre o porvir dessas duas nações. Uma, princípio do iluminismo e dos ideais de liberdade, paridade e fraternidade, se revela um país fragmentado por tensões étnicas, religiosas e sociais e por tendências e práticas econômicas e comerciais marcadamente protecionistas, afastando-a de sua glória pretérita e transformando-a, porquê se diz pejorativamente nos centros financeiros e políticos europeus, em um país “em vias de subdesenvolvimento”.
A outra, abençoada por Deus e formosa por natureza, mas que continua se apegando a um porvir de grandeza que insiste em não chegar, sofre sob o tirania de um consórcio de poder – fruto de desvãos e desvelos urdidos às margens da lei – que não possui a menor ideia de porquê formular uma estratégia de desenvolvimento do País, que insiste na prática nefasta de gastança fiscal porquê mecanismo de manipulação de massas, que glorifica a ignorância, enaltece o vitimismo e antagoniza empresários, industriais, agricultores e os setores mais produtivos da economia, assim condenando a sociedade ao retrocesso econômico, social e político. Dessa forma, quase sem que se perceba, glória pretérita e grandeza futura, em meio a brumas, vão se desfazendo….
Marcos Degaut é Doutor em Segurança Internacional, Pesquisador Sênior na University of Médio Florida (EUA), ex-Secretário Peculiar Apenso de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e Ex-Secretário de Produtos de Resguardo do Ministério da Resguardo