A visita oficial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) ao Brasil nesta semana despertou sensações ambíguas na oposição. Alguns a veem como ocasião importante para ajudar a barrar a onda de censura no país, enquanto outros a encaram com ceticismo e não veem chance de consequências relevantes.
O órgão internacional veio para avaliar a situação da liberdade de expressão no país. A missão, liderada pelo relator especial Pedro Vaca entre 9 e 14 de fevereiro, ocorre após um convite feito pelo próprio governo Lula, através do Itamaraty, motivado por denúncias feitas pela oposição à CIDH.
A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH já se reuniu com ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), parlamentares, membros do Ministério Público, representantes de organizações de direitos humanos, jornalistas, vítimas de censura e perseguição judicial e donos de plataformas digitais, em encontros realizados em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.
Embora a CIDH seja um órgão independente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que é o tribunal da OEA responsável por julgar casos de violações desse tipo, sua atuação pode influenciar futuras medidas dessa Corte contra o Brasil, caso a comissão identifique violações sistemáticas à liberdade de expressão no país.
A vinda da CIDH só foi possível porque o governo Lula concedeu autorização, já que, conforme previsto no artigo 48 do Pacto de São José da Costa Rica, a Comissão não tem o direito automático de conduzir inspeções nos países signatários. “Caso o Brasil tivesse barrado a visita do sr. Vaca, ele não viria, o que não quer dizer que o Brasil tenha sido especialmente magnânimo. A negativa seria um horror de relações públicas”, esclarece Luiz Augusto Módolo, doutor em Direito Internacional pela USP.
O principal alvo das acusações de abuso não é o governo Lula, mas o Judiciário brasileiro, responsável direto pelos casos mais graves de censura e perseguição contra a oposição no Brasil. A expectativa é que, ao final da missão, a CIDH apresente suas conclusões por meio de um relatório e, caso considere necessário, encaminhe recomendações ao governo brasileiro.
A CIDH não tem poder para impor sanções diretas ao Brasil, mas sua visita pode ter alguns desdobramentos políticos, diplomáticos e jurídicos. Os relatórios não obrigam o cumprimento das recomendações, mas costumam ser usados como referência por organizações internacionais e governos estrangeiros para pressionar mudanças políticas ou legislativas, e são um primeiro passo para a instauração de processos na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Como é o processo na CIDH
Maíra Miranda, doutora em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca, explica que a CIDH opera dentro de um sistema de “soft law”, ou seja, suas recomendações não são obrigatórias.
“A CIDH emite recomendações aos Estados, que não são vinculantes. Apesar de contar com a boa-fé dos Estados no cumprimento de suas recomendações, não há uma obrigação jurídica estrita”, diz. “No Sistema Interamericano de Direitos Humanos, é a Corte Interamericana que profere decisões vinculantes, pois se trata de um tribunal e, portanto, suas sentenças são obrigatórias aos Estados. E quem encaminha os casos à Corte é a Comissão, tendo, assim, um papel decisivo para a eventual responsabilização do Estado.”
Relatórios da CIDH podem ser usados por organismos internacionais para questionar o país em fóruns como a ONU e a própria OEA. Além disso, políticos e organizações da sociedade civil podem usar o documento como base para ações judiciais ou pedidos formais de mudanças em políticas públicas.
Uma das ferramentas mais imediatas que a CIDH pode usar são as medidas cautelares, que servem para proteger indivíduos em situação de grave risco antes mesmo de que haja julgamento pela Corte Interamericana. “Ela pode, por iniciativa própria ou a pedido da parte, conceder a medida. Neste sentido, seria possível a concessão de medidas cautelares a vítimas cuja situação grave e urgente seja conhecida pela Comissão, por exemplo, durante a visita da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão”, explica Maíra.
Medidas cautelares poderiam ser, na prática, por exemplo, a proteção física com escolta policial para vítimas de perseguição, a revisão de prisões arbitrárias, a obrigação de garantir tratamento médico ou psicológico, a suspensão de medidas que ferem os direitos humanos etc. A garantia do cumprimento das medidas cautelares da CIDH se dá por mecanismos de pressão internacional, princípios de boa-fé entre os Estados e, em processos mais avançados, pela possibilidade de uma futura condenação internacional.
Para Maíra, o viés ideológico pode ser determinante na decisão de acatar ou não um pedido de medida cautelar na CIDH. “Sabe-se que a Comissão já recebeu pedidos de medidas cautelares, inclusive de jornalistas e políticos presos, e não houve a apreciação ou concessão do pedido. Nesse mesmo viés de pressão sobre os Estados, a CIDH pode emitir notas condenando violações aos direitos humanos. Porém, as notas em relação ao Brasil parecem ser seletivas, e mais direcionadas a vítimas de um espectro ideológico, ao invés de defenderem os direitos humanos de forma universal, sem discriminação”, observa.
Consequência mais extrema seria condenação na Corte Interamericana
A longo prazo, se as recomendações da CIDH não forem seguidas e o Brasil continuar sendo acusado de violações, a Comissão pode levar o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Essa etapa pode resultar em uma condenação internacional do Brasil, levando a indenizações ou exigências de reformas institucionais.
A relação entre a Comissão e a Corte é fundamental para entender os possíveis desdobramentos da visita. Luiz Augusto Módolo esclarece o papel de cada uma no Sistema Interamericano de Direitos Humanos: “A Comissão, a título de comparação, seria uma espécie de ‘promotoria de Justiça’ ou ‘ombudsman’ do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, sendo a Corte Interamericana o tribunal que afinal servirá como tribunal de Direitos Humanos das Américas, de forma similar à Corte Europeia de Direitos Humanos no continente europeu”.
Caso seja levado à Corte Interamericana e condenado, o Brasil poderá ser obrigado a modificar leis, cessar práticas consideradas violadoras de direitos humanos e até pagar indenizações.
“Na prática, as condenações da Corte têm tanto um aspecto moral, de autocumprimento por parte de um Estado que venha a ser condenado, quanto podem gerar condenações em pecúnia. Somente estados-parte e a Comissão têm direito de submeter um caso à decisão da Corte, e a Corte só aprecia casos que tenham passado pelo procedimento interno da Comissão. Daí a importância do trabalho da Comissão e de seus relatores especiais”, explica Módolo.
Qual foi o impacto de outras visitas da CIDH no Brasil e o que tende a acontecer agora
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (tem a mesma sigla da Comissão, CIDH) já condenou o Brasil por violações de direitos humanos em 12 casos diferentes, relacionados a temas como impunidade, violência policial, conflitos fundiários e falhas de fiscalização.
A sentença mais recente é de 2023, em um caso de violência policial: em 2002, durante a Operação Castelinho, doze pessoas foram executadas pela Polícia Militar de São Paulo, em ação realizada pelo Grupo de Repressão e Análise de Crimes de Intolerância (GRADI). A Corte Interamericana de Direitos Humanos responsabilizou o Brasil pela violência policial, pela falta de diligência nas investigações e pela violação do direito à verdade e à proteção judicial das vítimas e seus familiares.
Em 2022, o país foi responsabilizado pela omissão no caso do assassinato do advogado Gabriel Sales Pimenta, morto em 1982 após defender trabalhadores rurais no Pará. A Corte concluiu que o Estado não investigou o crime com a devida diligência, permitindo a prescrição do processo sem identificar os culpados.
Em 2020, o Estado brasileiro foi condenado pela explosão da fábrica de fogos de artifício Santo Antônio de Jesus, na Bahia, que matou 64 pessoas, incluindo 22 crianças, em 1998. O tribunal apontou que o Estado falhou ao permitir o funcionamento irregular da fábrica, que empregava menores em atividades perigosas. Em 2018, o Brasil foi condenado pela demora na demarcação das terras do povo indígena Xucuru.
Todos esses casos, contudo, tratam de violações específicas e delimitadas, enquanto as acusações relacionadas ao aparato de censura estabelecido pelo Judiciário brasileiro envolvem um sistema estruturado responsável por diversos casos de abuso aos direitos humanos. Essa diferença torna ainda mais incertos os possíveis desdobramentos concretos da visita ao Brasil.
Maíra Miranda diz que não é muito otimista em relação a grandes mudanças, por causa do “viés ideológico que paira na CIDH e que, infelizmente, discrimina na hora de decidir quais vítimas serão protegidas e quais serão ignoradas”. “Não obstante, acredito que qualquer aceno que seja feito agora – seja por meio do reconhecimento de que há casos de censura no Brasil, ou, quem sabe, sendo mais otimista, a admissibilidade de alguma denúncia que está parada – já seria uma vitória e , pelo menos, seria documentado em nível internacional o estado de exceção que vivemos”, comenta.
Augusto Zimmerman, professor do Sheridan Institute of Higher Education e especialista em Direito Internacional, é mais pessimista. “Acho que não vai acontecer rigorosamente nada”, diz. Para ele, Pedro Vaca, relator do caso, “está muito ligado à elite globalista”. “A minha opinião é que isso vai ser um fracasso retumbante, e todas as pessoas que participarem dessa reunião, os depoimentos, tudo, vão ser elementos usados no futuro como instrumentos de perseguição.”
Já para Luiz Augusto Módolo, “uma condenação do Brasil não é impossível”. “A visita por si só não é garantia de reversão da situação atual do Brasil. Tanto pode o relator afirmar que tudo está bem quanto fazer um relatório incisivo, como se espera, a ser apreciado pela comissão”. Neste caso, segundo ele, se a CIDH entender que o Estado brasileiro não sanou os erros apontados, o país pode, sim, precisar responder a uma ação na Corte Interamericana.