A Organização dos Estados Americanos (OEA) divulgou, no fim da semana passada, seu relatório anual sobre a situação da liberdade de expressão nos Estados-membros, texto preparado pela Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (Rele) da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Embora este ainda não seja o texto referente à visita que o relator Pedro Vaca Villareal fez ao Brasil em fevereiro, quando foram ouvidas várias autoridades, vítimas de censura e especialistas sobre liberdade de expressão, é o mesmo Vaca Villareal quem assina o relatório anual, o que é motivo de preocupação a respeito do teor do documento específico sobre o Brasil, que ele ainda não tornou público.
Isso porque o texto publicado adota um padrão duplo extremamente preocupante: enquanto menciona quase que de passagem algumas das decisões do Supremo Tribunal Federal que estabeleceram o império da censura no Brasil, jamais fazendo qualquer juízo de valor sobre delas, o relatório da OEA toma partido de forma explícita em outros casos envolvendo parlamentares brasileiros ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro, ou que tenham perfil direitista ou conservador. É o caso do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), criticado pela OEA devido ao episódio em que usou uma peruca na tribuna da Câmara para, no Dia Internacional da Mulher, criticar a ideologia de gênero, especialmente a possibilidade de transexuais frequentarem banheiros femininos e participarem em competições femininas, competindo contra atletas nascidas mulheres.
Um relatório que critica um parlamentar por usar uma performance de efeito para discutir ideias enquanto fecha os olhos para a censura explícita vinda dos tribunais superiores pode servir para qualquer outra coisa, menos para a defesa da liberdade de expressão
Enquanto isso, decisões monocráticas de Alexandre de Moraes, tenham ou não sido referendadas pelo plenário ou ao menos por uma turma do STF, são tratadas de forma puramente descritiva. É o caso do bloqueio ao X e da censura imposta ao ex-assessor presidencial Filipe Martins. A censura de livros supostamente homofóbicos e misóginos, que tiveram sua retirada de circulação determinada pelo ministro Flávio Dino, também é mencionada. Mas, em todos esses casos, não há uma palavra sequer de crítica, e o relatório “terceiriza” as objeções, sempre atribuindo-as a “organizações da sociedade civil”. Isso quando o relatório não omite dados importantes, como ao falar da criação do Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (Ciedde) do TSE, sem citar a “parceria fora do rito” entre TSE e STF para embasar decisões de censura. Como se não bastasse, em seu comentário sobre o bloqueio do X o relator Pedro Vaca ao menos insinua que a medida seria justificada.
Um relatório que critica um parlamentar por usar uma performance de efeito para discutir ideias – e não para atacar grupos minoritários, como dizem seus detratores – enquanto fecha os olhos para a censura explícita vinda dos tribunais superiores pode servir para qualquer outra coisa, menos para a defesa da liberdade de expressão. Alguém que não tenha acompanhado o noticiário brasileiro dos últimos seis anos e leia o texto assinado por Pedro Vaca será levado a acreditar que a grande ameaça à liberdade de expressão no Brasil vem de parlamentares usando perucas, e não da cúpula do Poder Judiciário, que apenas estaria defendendo a democracia, ainda que para isso precise causar alguns “efeitos colaterais” indesejados.
Esta distorção grotesca da realidade é um desserviço perigoso, pois dificulta qualquer tipo de pressão internacional pelo restabelecimento pleno das garantias democráticas no Brasil. Além disso, o teor do relatório demonstra que o próprio Pedro Vaca parece ser incapaz de colocar de lado as próprias preferências políticas para fazer uma análise isenta e criteriosa, cotejando as ações da Justiça brasileira com o que diz a Constituição e a melhor doutrina sobre liberdade de expressão. Isso o desqualifica para o exercício de uma função cuja essência é justamente a defesa desta liberdade, e também desmoraliza a própria OEA, que, graças à omissão de um dos seus representantes, falhará na defesa da democracia em um de seus Estados-membros.
Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo alimentam a esperança de que o relatório específico sobre o Brasil, fruto da visita feita por Pedro Vaca ao país em fevereiro, venha com um outro tom. No entanto, se as entrevistas feitas aqui tivessem convencido o relator da CIDH sobre a gravidade da situação brasileira, seria plausível que ele já tivesse emendado o relatório anual – até mesmo para evitar o que seria uma contradição gritante entre um primeiro texto que ignorasse as supremas censuras e um segundo texto que as denunciasse. Se, neste intervalo de quase três meses, Pedro Vaca não achou necessário incorporar no relatório anual o que viu e ouviu das vítimas do arbítrio supremo, infelizmente as chances de a OEA se tornar cúmplice do ataque judicial à liberdade de expressão no Brasil são grandes.