A nota oficial do Ministério das Relações Exteriores, divulgada na quarta-feira (26), elevou a tensão diplomática entre Brasil e Estados Unidos, ao criticar duramente a declaração de um departamento do governo americano sobre a imposição de multas a empresas sediadas nos EUA e censura a residentes do país.
“O governo brasileiro rejeita, com veemência, qualquer tentativa de politizar decisões judiciais e reafirma a importância do respeito ao princípio republicano da independência dos poderes, garantido pela Constituição Federal de 1988”, destacou o Itamaraty.
A nota oficial foi uma resposta à manifestação do Escritório de Assuntos do Hemisfério Ocidental dos Estados Unidos, feita pelas redes sociais e replicada pela Embaixada dos EUA no Brasil. O órgão americano, vinculado ao Departamento de Estado dos EUA, criticou o bloqueio de plataformas de redes sociais de matriz americana, como X e Rumble, e a censura de usuários residentes dos EUA.
“O respeito à soberania é uma via de mão dupla com todos os parceiros dos EUA, incluindo o Brasil. Bloquear o acesso à informação e impor multas a empresas sediadas nos EUA por se recusarem a censurar indivíduos que lá vivem é incompatível com os valores democráticos, incluindo a liberdade de expressão”, afirmou o Escritório de Assuntos do Hemisfério Ocidental.
O posicionamento do Itamaraty insere-se em um cenário de crescente embate jurídico e administrativo contra o ministro Alexandre de Moraes, do STF, podendo converter-se em um incidente de maiores proporções na relação bilateral.
Além da declaração do Escritório de Assuntos do Hemisfério Ocidental, tramitam na Câmara dos Deputados dos EUA propostas que visam cassar o visto de Moraes, além de um pedido formal para que o governo americano o sancione com base na Lei Magnitsky. A legislação, voltada para estrangeiros acusados de violações de direitos humanos e corrupção, prevê bloqueio de ativos financeiros dentro e fora dos EUA e impede o ingresso em território americano.
Segundo fontes do governo ouvidas pela Gazeta do Povoa declaração do orgão vinculado ao Departamento de Estado dos EUA causou incômodo no Palácio do Planalto, que resolveu responder de forma contundente.
Especialistas consultados pela reportagem alertam, porém, que o episódio pode comprometer a relação bilateral, sobretudo à medida que o governo brasileiro se engaja no debate. Na avaliação de Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington e Londres, o posicionamento da chancelaria brasileira foi equivocado e não deveria ter acontecido.
“O Brasil não deveria ter se envolvido nesse processo, assim como não se envolveria em outros casos semelhantes”, disse à Gazeta do Povo. Na concepção do diplomata, a nota do Itamaraty escalonou o caso e o levou à esfera governamental.
Para críticos da resposta do governo brasileiro, a reação do Itamaraty reforça a percepção de alinhamento entre Palácio do Planalto e STF.
Politização do Itamaraty ofendeu a sua própria tradição, diz deputado
O deputado Marcel Van Hattem (Novo-RS) criticou a postura do chanceler Mauro Vieira, classificando-a como um “ato vergonhoso”, que fere as tradições diplomáticas brasileiras, em especial a distinção entre questões de Estado e questões de governo. “Acredito que a maioria dos diplomatas desaprova essa reação do Itamaraty em defesa de Moraes”, declarou.
O tom político da nota do Itamaraty ficou mais evidente ao mencionar que a disseminação massiva de desinformação nas redes sociais teria feito parte de uma “orquestração antidemocrática”, culminando na suposta tentativa de golpe contra a soberania popular após as eleições presidenciais de 2022.
Na avaliação de Vitelio Brustolin, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador da Universidade de Harvard, o governo brasileiro deveria ter buscado, por meios diplomáticos, o diálogo com o governo americano.
“Não há por que o Itamaraty atuar especificamente nesse caso, mas também não há por que o Brasil manter distanciamento diplomático dos Estados Unidos. Isso não interessa a ninguém, sobretudo neste momento de negociação de tarifas”, avalia.
Após Lula declarar apoio a Kamala Harris nas eleições presidenciais americanas de 2024, o relacionamento entre os dois países não passou do cordial. Segundo maior parceiro comercial do Brasil, ainda não houve um diálogo de alto nível entre a Casa Branca e o Palácio do Planalto. Conforme apurou a Gazeta do Povo também não houve, até o momento, um contato direto entre os chefes de chancelaria dos dois países.
Para o consultor eleitoral e cientista político Paulo Kramer, o episódio entre o Itamaraty e o Departamento de Estado americano insere-se em um contexto de politização da diplomacia brasileira, comprometendo sua credibilidade.
“O corpo diplomático do Brasil, outrora reconhecido por seu caráter institucional e apartidário, perde prestígio ao ser forçado a defender autoridades cada vez mais impopulares internamente”, analisou. Kramer acrescentou ainda que a legitimidade histórica do Itamaraty advinha de sua postura de distanciamento em relação a disputas políticas domésticas.
Especialistas apontam extravasamento do embate para além do campo jurídico
Eduardo Galvão, diretor da consultoria Burson, argumenta que a disputa entre Moraes e as big techs associadas ao governo Trump vai além da questão jurídica e regulatória, tornando-se embate geopolítico e de egos. Para ele, o confronto reflete visões opostas sobre regulação das plataformas digitais e cada ação ou resposta visa afirmar autoridade. “O maior risco disso tudo é que a politização do Judiciário e a personalização do conflito acabem minando a credibilidade das instituições”, sublinhou.
Já o advogado criminalista Leonardo Massud enaltece o fato de que as decisões judiciais representam o Judiciário e o Estado, não podendo ser tomadas em caráter pessoal. Ele afirma que as eventuais discordâncias deveriam ser tratadas dentro do sistema recursal do Brasil e não em tribunais no exterior. “Qualquer tentativa de intimidar magistrados, mesmo sob o pretexto de ação judicial, constitui uma interferência externa na jurisdição brasileira e uma afronta à soberania nacional”, opina.