Imagine um mundo em que a liberdade de pensamento, de expressão e de religião é suprimida por um véu de censura disfarçado de “segurança”. Agora, pare de imaginar. Esse mundo já existe. Na Escócia, sob a chancela de um pretenso progresso civilizatório, a democracia dá mais um passo rumo ao totalitarismo mascarado. A criação das chamadas “buffer zones” – áreas delimitadas em torno de clínicas de aborto – não apenas restringe a circulação de certas ideias, mas criminaliza algo que deveria estar além do alcance de qualquer ditador: a oração.
O recente escândalo envolvendo a parlamentar Gillian Mackay e sua lei das “zonas de proteção” é um retrato perfeito do tipo de mentalidade burocrática que se infiltra na cultura ocidental e, sob o pretexto de proteger direitos, aniquila as liberdades fundamentais. Em um acesso de desfaçatez, Mackay admitiu que uma simples oração feita dentro de casa, se visível por uma janela voltada para uma clínica de aborto, pode ser considerada crime. O detalhe alarmante? O caráter criminoso do ato “depende de quem estiver passando pela janela”, admite a parlamentar. A subjetividade da censura nunca esteve tão escancarada. Não se trata mais de leis escritas, mas de sentimentos momentâneos e julgamentos arbitrários de transeuntes.
Ao censurar uma conversa, uma prece ou um simples cartaz, os novos burocratas estão preparando o terreno para algo muito pior. E se hoje eles podem decidir onde e quando alguém pode rezar, amanhã terão o poder de decidir o que se pode rezar
Isso não é apenas um absurdo lógico e jurídico; é uma subversão descarada dos princípios fundamentais do Direito. Se um cidadão pode ser penalizado por simplesmente rezar dentro de sua própria casa, sem qualquer conduta ativa que interfira na esfera de terceiros, então não estamos mais diante de um Estado de Direito, mas sim de um regime que criminaliza intenções e crenças interiores. A liberdade de pensamento e a liberdade religiosa não são mais direitos garantidos, mas concessões temporárias sujeitas aos caprichos de quem se sente ofendido.
A criminalização da oração em público, ou mesmo em privado, representa uma nova fronteira da tirania contemporânea. Não é suficiente que as elites políticas tenham moldado um ambiente hostil às crenças tradicionais. Agora, qualquer manifestação religiosa deve ser silenciada, sob o risco de punição. A “neutralidade” do Estado, tanto proclamada por defensores de uma laicidade militante, revela-se uma farsa grotesca: há um lado que pode se manifestar, e há outro que deve ser calado.
E se engana quem pensa que se trata apenas de proteger a privacidade e a segurança das pacientes que acessam os serviços de aborto. O que temos aqui é um sistema que não apenas restringe discursos incômodos, mas tenta controlar o pensamento e a fé. E não se iludam: hoje é a oração ao redor das clínicas de aborto, amanhã será a transmissão de valores cristãos dentro das próprias igrejas.
O caso da escocesa Rose Docherty, uma senhora de 74 anos presa por segurar um cartaz onde se lia “Coerção é um crime, estou aqui para conversar, se você quiser”, ilustra o quão distópico se tornou o Ocidente. Quando uma idosa é algemada por convidar ao diálogo, o Estado de Direito já se converteu em um campo de concentração ideológico.
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A grande ironia dessa repressão é que ela se disfarça de política pró-escolha. Mas que escolha é essa que impede as mulheres de poderem ouvir diferentes perspectivas antes de tomarem uma decisão tão grave e irreversível? Além de censurar uma visão alternativa, proíbe-se até mesmo o oferecimento de apoio emocional e informações, restringindo a autonomia individual sob o pretexto de proteção. Proibir a mera presença de uma pessoa esteja simplesmente se colocando à disposição para uma conversa consensual próximo a uma clínica de aborto não é proteção; é doutrinação estatal.
A sociedade ocidental, outrora fundada nos pilares da liberdade individual e da razão, está sendo desmantelada pelas mesmas classes dominantes que se autoproclamam campeãs dos direitos humanos. Ao censurar uma conversa, uma prece ou um simples cartaz, os novos burocratas estão preparando o terreno para algo muito pior. E se hoje eles podem decidir onde e quando alguém pode rezar, amanhã terão o poder de decidir o que se pode rezar.
O que acontece na Escócia é um sinal de alerta para o mundo todo. O autoritarismo nunca se instala de uma vez. Ele avança aos poucos, com pretextos nobres e justificativas pragmáticas. Quando nos damos conta, os direitos que considerávamos inalienáveis já foram corroídos. Se não houver resistência firme e imediata, esse modelo de repressão se espalhará, tornando a liberdade de pensamento um crime e a manifestação da fé um ato de subversão.
Se ainda existe um resquício de lucidez na sociedade ocidental, é hora de usá-lo. O momento de reagir é agora, enquanto ainda podemos falar – ou rezar – sem medo de sermos presos por quem passa pela janela.
André Fagundes é doutorando em Direito Público, mestre em Direito Constitucional, e investigador do Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. É também professor na pós-graduação em Direito Religioso na UniEvangélica/IBDR e pesquisador do Centro Brasileiro de Estudos em Direito e Religião (CEDIRE).
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