Desde que o Manto Tupinambá foi trazido da Europa de volta ao Brasil, em 2024, indígenas reivindicam o retorno da peça ao território de Olivença, em Ilhéus (BA). “Eu sinto como se o manto ainda estivesse na Dinamarca”, diz a cacica Jamopoty Tupinambá, de 63 anos.
Assim como sua mãe, Amotara Tupinambá, ela faz campanha pelo retorno da peça, que foi levada à Europa no século 17, durante o período colonial. O processo de repatriação começou em 2000 e só se concretizou no ano passado. Desde julho, a peça está no Museu Nacional do Rio de Janeiro.
Os tupinambás lamentam a distância do manto, que puderam ver apenas em sessões especiais, em setembro, durante a celebração de retorno. “Para nós, o manto não é apenas um objeto de arte, é um ancião, uma entidade sagrada que carrega a memória de nossos ancestrais”, diz Jamopoty.

Durante a cerimônia de retorno, Lula defendeu que o manto seja enviado a Olivença e destacou o engajamento dos tupinambás na repatriação da peça. O evento contou com a presença da ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, do governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, além de lideranças tupinambás e pataxós de Ilhéus.
“O lugar dele não é aqui”, disse Lula à multidão. “O governador da Bahia tem a obrigação e o compromisso histórico de construir um lugar que possa receber esse manto e preservá-lo para que ele não estrague.”
A fala gerou expectativa, mas, seis meses depois, não houve nenhum diálogo formal sobre o tema.
Os tupinambás — cuja cultura foi reconhecida oficialmente pela Funai apenas em 2001 — veem no manto um símbolo da resistência cultural. “Nós fomos considerados extintos, e hoje temos um manto de 386 anos que ficou na Dinamarca, preservado, para mostrar ao mundo que ainda estamos aqui, vivos”, disse Jamopoty depois da sessão em setembro.
Pronunciamento do Povo Tupinambá sobre o Retorno do Manto; pic.twitter.com/licxr7prbg
– Naia tupinamba (@Naiatupinamba) 14 de julho de 2024
Museu Nacional em conflito com tupinambás
O Museu Nacional disse, em nota ao jornal Folha de S. Pauloque não participou de nenhuma reunião com os tupinambás depois do retorno do manto ao Brasil nem começou um processo sobre o envio da peça para a Bahia.
“É importante lembrar que os representantes do povo tupinambá concordaram com todos os pontos da negociação que permitiu a volta do ancião ao Brasil, a partir da doação do Museu da Dinamarca como contribuição para o processo de reconstrução do Museu Nacional da UFRJ, a Universidade Federal do Rio de Janeiro”, diz o comunicado.
O diretor do museu, Alexander Kellner, teria dito, em uma de suas visitas a aldeia Itapuã, em Ilhéus, que não permitiria o envio do manto para a região, segundo as lideranças indígenas ouvidas pela Folha.


Em agosto, os tupinambás interromperam uma fala de Kellner quando ele negou que o povo havia sido informado que o manto chegou ao Brasil, via WhatsApp, quatro dias depois da chegada real. Um dos acordos firmados entre os indígenas e o museu seria a recepção da peça com um ritual sagrado ainda no aeroporto. No entanto, o item chegou de forma sigilosa, o que causou indignação dos tupinambás.
A gestão do museu se defendeu ao dizer que o sigilo atendia aos protocolos de segurança impostos pelo museu da Dinamarca.
Já o Ministério dos Povos Indígenas declarou à Folha apoio à devolução da peça para Olivença, onde fica a aldeia Itapuã. A pasta disse ainda que atua para a criação de uma política pública de preservação de artefatos indígenas em seus territórios.
Líder indígena teme deixar Manto Tupinambá sob administração da UFRJ
Com cerca de 1,20 m de altura por 80 cm de largura, o manto teria sido levado à Europa por holandeses, por volta de 1644. É feito com penas de guarás, papagaios e araras, e estava no Museu Nacional da Dinamarca desde 1689. Existem apenas 11 peças como essa no mundo — essa foi a primeira a retornar ao Brasil e quatro permanecem na Dinamarca.


Os tupinambás, considerados um dos primeiros povos indígenas a ter contato com os portugueses, ainda requerem demarcação de seu território, que abrange regiões de Ilhéus, Una e Buerarema. “Sem a demarcação, não temos segurança para construir um espaço e proteger o manto”, afirma a anciã Yakuy Tupinambá, 64.
O processo de demarcação, iniciado em 2009, está em fase avançada, mas ainda sem homologação. Em audiência pública em 11 de março, o MPF recomendou sua conclusão como forma de “reparação histórica, proteção à vida e garantia de direitos”.
A aprovação depende das assinaturas de Lula e do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski. No entanto, o governo federal recusou, também no mês passado, a portaria declaratória, junto de duas outras terras reclamadas por indígenas na Bahia — Barra Velha do Monte Pascoal e Tupinambá de Belmonte.


Jamopoty teme que o manto corra riscos no Museu Nacional, em meio aos problemas de sua administradora, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que convive com dívidas, problemas de segurança e cortes de fornecimento de água luz. Ela teme um novo incêndio no museu, como o de 2018, que destruiu mais de 90% do acervo do Museu.
A cacia destaca que o manto reforça a atuação do povo por demarcação. “O manto voltou para nós no momento em que mais precisávamos. Nossa luta por demarcação ganhou mais visibilidade”, disse à Folha. “Ele voltou para dizer que nós pertencemos a esse território.”
O Ministério da Educação informou que “tem trabalhado, desde janeiro de 2023, para recompor e mitigar as reduções orçamentárias, a fim de garantir o pleno funcionamento das instituições”.