Desde meados dos anos 1990, a ONU, por meio de agências como a OMS, tem classificado o aborto como uma questão de saúde pública. No entanto, vale questionar essa abordagem, pois a gravidez não é uma doença – ninguém “contrai” gravidez por falha imunológica ou outro problema de saúde. Da mesma forma, o aborto não é um tratamento curativo, mas uma decisão deliberada de matar. Dado que ele resulta na morte de um ser humano em desenvolvimento, o aborto deveria ser considerado, no máximo, uma questão de segurança pública, e não de saúde pública.
Mas o que esse argumento busca, na verdade, é tirar o debate da esfera popular, relegando-o apenas aos círculos técnicos que, em muitos casos, estão permeados por visões ideológicas específicas que moldam a forma com que seus operadores enxergam o mundo e conduzem a questão apenas para o lado da descriminalização. Quando esse argumento é invocado, há notadamente uma tentativa de interromper a discussão democrática e evitar o aprofundamento nas questões éticas, filosóficas ou religiosas envolvidas no aborto. A estratégia subjacente é impor uma narrativa autoritária do tipo: “Entenda que o aborto não é uma questão de crenças, mas de saúde pública. Esqueça suas opiniões e deixe que médicos e burocratas resolvam isso.” Essa abordagem funciona quase como um argumento de autoridade, semelhante ao conceito de “lugar de fala”, onde a legitimidade para opinar é restrita a um grupo específico – neste caso, profissionais da saúde e técnicos do governo.
No entanto, essa forma de encerrar o debate é problemática ao mesmo tempo em que é autoritária. Questões como o aborto envolvem mais do que ciência médica; elas tocam no valor da vida humana e na responsabilidade social. Reduzir a discussão a um aspecto técnico (e muitas vezes carregado de ideologia) afasta a população e silencia vozes que também têm o direito e o dever de participar, uma vez que o impacto das decisões sobre a matança de bebês no ventre de suas mães afeta toda a sociedade. Por isso, é essencial manter o debate aberto, abrangendo todos os aspectos – éticos, religiosos, filosóficos, sociais e legais – e não deixá-lo restrito a uma visão burocrática.
Mas a pergunta central é: o que, de fato, caracteriza uma questão de saúde pública? Em geral, entende-se que problemas de saúde pública afetam coletivamente a população e envolvem riscos graves, mortes, ou doenças cuja magnitude e severidade justificam intervenções diretas por meio do poder público. Sob essa perspectiva, se aceitarmos o conceito amplamente aceito de saúde pública como o conjunto de medidas executadas pelo Estado para garantir o bem-estar físico, mental e social da população, os dados disponíveis não sustentam que o aborto, principalmente o aborto clandestino – que é o alvo da denúncia do argumento que estamos combatendo – seja uma emergência dessa natureza no Brasil.
O aborto não promove a saúde, enquanto a gravidez, sim. O nascimento de filhos é amplamente reconhecido, tanto pela mastologia quanto pela oncologia, como um fator benéfico para a saúde sexual e reprodutiva da mulher
De acordo com o DataSUS, plataforma utilizada inclusive pela ONU, as causas potencialmente ligadas a abortos inseguros em 2022 corresponderam a apenas 2,5% das mortes maternas. A hipertensão gestacional (8,9%), eclampsia (10,7%) e infecções parasitárias (8,7%) demonstram ser ameaças significativamente mais urgentes. Ao ampliarmos a análise para toda a mortalidade feminina, os abortos que podem ser considerados como clandestinos respondem por apenas 0,04% das mortes, uma proporção muito inferior às causadas por doenças respiratórias, infecções e diabetes.
Diante desses dados, cabe questionar: quais critérios estamos usando para classificar algo como um problema de saúde pública? Se o aborto clandestino representa uma fração tão pequena das causas de mortalidade, a ideia de enquadrá-lo nessa categoria parece carecer de fundamentos sólidos. E essa é uma questão importante, pois discussão de algo que deve ser declarado como problema/emergência de saúde pública, que entra na agenda do governo e passa inclusive a receber recursos específicos para aquilo, precisa ser esclarecida de forma honesta e fundamentada em dados concretos para que a agenda pública priorize as reais necessidades de saúde e não sirva a fins escusos baseando-se em argumentos ideológicos travestidos de ciência.
Há outro lado importante a se pensar nessa história: Se por um lado o aborto hoje não é uma questão de saúde pública, por outro a sua descriminalização pode transformá-lo em um. O aborto acarreta riscos significativos para a vida da mãe, expondo-a a possíveis transtornos imediatos e posteriores. Complicações físicas como hemorragia, abortamento incompleto, infecção, lesão uterina, doença inflamatória pélvica, infertilidade, gravidez ectópica, placenta prévia, partos prematuros em gestações posteriores e até mesmo câncer de mama, estão associados ao aborto induzido.
No aborto farmacológico, quando a gestação tem menos de 12 semanas, com uso de medicamentos como o Cytotec, cuja substância ativa é o misoprostrol, os efeitos colaterais podem ser catastróficos: anemia grave, coagulopatia, doença hepática ativa, doença cardiovascular, transtorno convulsivo não controlado, aumento de sete vezes no risco de placenta prévia em gestações futuras, aumento de duas vezes em prematuridade para gestações futuras, aumento na incidência de alterações uterinas, redução definitiva da fecundidade em 7,8% dos casos. Esses fatores, sim, poderiam transformar a legalização do aborto em uma porta aberta para um grave problema de saúde pública.
Além desses problemas físicos, o aborto representa, acima de tudo, uma agressão à própria mulher. O impacto sobre os atendimentos psicológicos, que certamente exigiriam maior atenção do poder público em caso de descriminalização do aborto, também seriam devastadores. A médica Luciana Lopes, em palestra no Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, destacou os riscos psicológicos associados ao aborto, que incluem:260% mais hospitalização psiquiatria, 138% maior incidência de depressão, 60% maior estresse pós-trauma, sete vezes mais tendências suicidas, 30-50% mais disfunção sexual. Outros efeitos incluem sentimentos de culpa, medo, isolamento/solidão e problemas nos relacionamentos. Não se pode ignorar o vasto universo de problemas físicos, mentais e sociais decorrentes da legalização dessa prática desumana.
O aborto não promove a saúde, enquanto a gravidez, sim. O nascimento de filhos é amplamente reconhecido, tanto pela mastologia quanto pela oncologia, como um fator benéfico para a saúde sexual e reprodutiva da mulher. Ter filhos reduz o risco de câncer de mama, como demonstram inúmeras pesquisas científicas, sendo essa informação inclusive amplamente divulgada na campanha do Outubro Rosa. Este fato não é segredo. A amamentação, por exemplo, já é reconhecida como um fator que diminui o risco de câncer de mama. Assim, enquanto de um lado discutimos as mortes maternas decorrentes da prática do aborto, de outro lado falamos sobre a promoção da saúde através do processo natural de ter filhos.
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Por fim, reforço que, ao que tudo indica, a liberação do aborto poderá também criar, além de um grave problema de saúde pública, um problema econômico grave. O aumento da demanda por exames de ultrassom e outros recursos que terão de ser direcionados para prática do aborto coloca em questão a já precária infraestrutura do sistema de saúde, especialmente no que se refere às maternidades públicas do Brasil. De onde virá o financiamento para cobrir essa nova demanda? Essa preocupação não é abstrata, e há precedentes para ela. De acordo com o Mapa de La Maternidad da Fundación RedMadre , em 2017 a Espanha gastou 3,6 milhões de euros para apoiar mulheres grávidas a terem seus filhos, enquanto desembolsou impressionantes 34 milhões de euros para que outras abortassem. Ou seja, quase 10 vezes mais foi gasto com abortos do que com partos – 9 de cada 10 euros foram usados para financiar abortos, enquanto apenas 1 euro foi destinado ao auxílio à maternidade. Em 2011, o governo britânico gastou 30 milhões de libras a mais do que o previsto em seu orçamento para subsidiar abortos. Portanto, ao analisarmos melhor os dados, o argumento se inverte: hoje, graças à criminalização do aborto, não enfrentamos esse problema de saúde pública e econômica.
Talvez seja relevante mencionar exemplos de países onde a proibição do aborto resultou na redução das mortes maternas, ou seja, promoveu saúde pública. No Chile, o aborto foi legalizado nos anos de 1931 até 1989. No entanto, ao contrário do que alegavam os defensores da legalização, a criminalização não aumentou as mortes maternas, mas, ao contrário, reduziu-as em 69,2% por causas relacionadas ao aborto. Esse dado evidencia que a restrição ao aborto está diretamente ligada à redução da mortalidade materna. Outro exemplo significativo é a Polônia, que, após proibir o aborto em 1993, registrou uma queda de 67% na mortalidade materna. Portanto, a criminalização do aborto se mostra, na prática, uma política eficaz de saúde pública.
Diante desses dados, o argumento de que o debate sobre o aborto deve ser encerrado sob a justificativa de problema de saúde pública, delegando o tema apenas a burocratas e médicos parciais, não resiste a uma análise justa e imparcial. A verdade é que maioria dos defensores do aborto realmente busca não é a garantia da saúde da mulher, mas a transformação dos padrões sociais. A ideia é que o aborto se torne apenas mais um método contraceptivo, caso os outros falhem. Essa perigosa realidade pode ser constatada ao analisarmos os dados de aborto disponíveis atualmente.
Em 1968, no Reino Unido, 2,8% das mulheres grávidas recorriam ao aborto. Esse número aumentou gradualmente, e hoje cerca de 20% das gestações terminam em aborto. Outro dado revelador é que apenas 24% dessas mulheres eram solteiras, viúvas ou sem companheiro. Ou seja, a grande maioria (76%) era casada ou vivia com um parceiro. Esses números sugerem que o aumento no número de abortos pode estar relacionado à adoção do aborto como um método contraceptivo, e não como uma medida extrema para proteger a saúde da mulher.
Ramon de Sousa Oliveira é pastor da Igreja Presbiteriana de Baixo Guandu (ES), autor do livro “O Valor da Vida” (Cultura Cristã).