O americano Charlie White atravessou o século XX porquê testemunha ocular de um período que registrou diversos fatos históricos revolucionários. Também viveu, no contextura pessoal, todas as alegrias e dificuldades que marcam a experiência humana. E ultrapassou a idade dos século anos com uma vitalidade invejável.
White morreria espargido unicamente pelas pessoas de seu círculo mais próximo se não fosse por David Von Drehle, um jornalista premiado que, por contingência, acabou se mudando para perto dessa figura surpreendente.
O resultado desse encontro é o livro “O que Aprendi Sobre a Felicidade Com meu Vizinho de 102 Anos”, lançado neste ano no Brasil pelo selo Vestígio e do qual selecionamos o trecho a seguir.
O ano era 2007. Minha esposa e eu havíamos desenraizado nossos filhos – de 9, 7, 6 e 4 anos – da capital dos Estados Unidos, Washington, para replantá-los nos subúrbios de Kansas City, Missouri.
Uma vez que Karen explicou certa vez, ela havia se cansado das dificuldades da parentalidade urbana: congestionamentos de trânsito, filas longas, aulas de natação a 1 dólar por minuto. Eu me cansara das pessoas discutindo entre si, principal passatempo da capital do país.
Estava começando um novo trabalho que me permitia atuar remotamente, e, posteriormente vários anos empolgantes na Costa Leste, oriente menino do Colorado estava pronto para voltar ao meio do país, onde os céus são maiores que os egos.
Na manhã em questão, nossa novidade morada ainda estava enxurrada de caixas de mudança esvaziadas pela metade. Uma vaga do calor de agosto havia se instalado no Meio-Oeste, e embora ainda fossem oito horas da manhã, um paredão escaldante opressivo me atingiu quando saí para pegar o jornal de domingo, porquê se eu tivesse desobstruído uma lavalouças cedo demais
A meio caminho da minha garagem, ergui os olhos e, através da claridade de um sol já furioso, vi alguma coisa que me fez parar de súbito. Meu novo vizinho estava lavando um sege em sua garagem rodear do outro lado da rua.
Pelo que eu me lembro (esse pormenor é motivo para alguma discordância na vizinhança), o sege era um reluzente Chrysler PT Cruiser cor de Fanta Uva. Palato de crer que minha memória é mais precisa do que a memorial daqueles que dizem que era um sege menos diferenciado, e minha imaginação é desenxabida demais para fabricar um viatura da cor de um refrigerante cintilando na frontispício da morada do vizinho.
Mas se de indumentária inventei esse carrinho berinjela, só pode ter sido em homenagem à dona do sege, uma mulher de tal carisma que veículos comuns não a mereceriam. (Nós a conheceremos em seu devido tempo, e ela vale a espera.)
O inegável é o seguinte: meu vizinho estava debaixo do sol de agosto, em uma manhã de domingo, lavando o sege da namorada. Não pude deixar de notar que o veículo em questão estava estacionado no mesmo lugar em que ela o deixara na noite anterior
Deduzi que o encontro que ele tivera no sábado à noite, com a motorista glamorosa do sege possivelmente roxo, evoluíra para o tipo de pernoite que faz um varão ter vontade de ser muito simpático na manhã seguinte.
Meu vizinho estava com o peito nu, vestindo unicamente um velho calção de banho. Com uma mangueira de jardim em uma das mãos e uma esponja ensaboada na outra, flexionava seu peito musculoso a cada esguichada e chacoalhada, enquanto seu cabelo ondulado caía jovialmente sobre um dos olhos.
Esse era Charlie White. Idade: 102 anos.
Eu havia sido apresentado ao médico bonitão alguns dias antes por seu genro, Doug, que morava na morada vizinha à nossa. A esposa de Doug era a filha mais novidade de Charlie, e o par havia se mudado para a rua para permanecer de olho nele. Sinceramente, eu não via premência.
Charlie era saudável, robusto e perspicaz. Quando nos conhecemos, ele me cumprimentou com o que costumava ser espargido porquê um aperto de mão másculo, não de esmigalhar os ossos, mas o tipo de pressão calorosa, firme e sincera.
Seus olhos eram claros, azuis-safira. Tinha boa audição, e a conversa passava com facilidade de um tópico a outro, do pretérito para o presente, para o porvir e de volta.
O cabelo esvoaçante e branco e o bigode jovial conferiam-lhe um ar elegante, um pouco teatral – lembrou-me vagamente Doc, do seriado dos anos 1950 Gunsmoke –, fator ampliado pela bengala que segurava casualmente ao lado do corpo.
Melhor ainda: numa reparo mais atenta, a bengala revelou-se um taco de golfe segurado de cabeça para insignificante. Usar um taco de golfe porquê bengala é de uma elegância que só é provável se ocorrer de maneira oriundo.
Um ligeiro problema de estabilidade o mantinha fora do campo de golfe – Charlie contou-me com tristeza naquele primeiro dia, mas (nesse momento, agitou o taco virado) esperava logo voltar ao batente.
Em resumo, Charlie era um espécime incrível. Ainda assim, ao saber um varão de 102 anos, ninguém espera estar dando início a uma longa e rica amizade.
Tabelas estatísticas não têm espaço para sentimentos ou desejos, e o que elas dizem é o seguinte: segundo a Governo da Previdência Social, em um grupo aleatório de 100 milénio homens, unicamente tapume de 350 – menos de 1% – chegam a 102 anos. Entre esses destemidos sobreviventes, o quidam médio tem menos de dois anos restantes.
Depois 104 anos, a vida se esvai rapidamente, porquê os últimos grãos de areia em uma ampulheta. No entanto, naquela abafada manhã de domingo, quando Charlie ergueu os olhos do sege e acenou para mim com a mão que segurava a esponja, havia alguma coisa nele que me levou a pensar que suas probabilidades não seriam encontradas em gráficos e planilhas.
A vida parecia ser mais ligeiro para ele do que para outros homens. Embora, porquê veremos, Charlie tivesse tido mais que o suficiente em material de tristeza e trabalho duro, não se ressentia das afrontas da vida nem reclamava das humilhações por que passara.
Também não deixava de usufruir as gentilezas fugazes e os lampejos de formosura em sua vivência, entre os quais, agora, a rara chance de lavar ele próprio o sege da namorada, pouco depois do seu 102º natalício, sob a ampla cobertura de uma velha árvore que morria mais rápido do que ele, ao mesmo tempo que tudo – o sege, a árvore, a esponja ensaboada, o vizinho surpreso arrastando-se até seu jornal, a namorada adormecida e o próprio Charlie – girava rapidamente pelo espaço, a bordo do planeta milagroso chamado Terreno.
Mais tarde, eu ouviria uma história sobre Charlie que representaria sua peculiar propriedade de gratidão à alegria de viver, aquilo que os franceses chamam de joie de vivre. Trata-se de um momento passageiro, zero elaborado ou tortuoso, mas que aponta, de claro modo, para a prelecção mais libertária e empoderadora da vida.
Maybelle Carter, matriarca da música country norte-americana, dedilhava sua guitarra Gibson e cantava francamente sobre se manter no lado ensolarado da vida. Juliana de Norwich, mística e visionária do século XIV, sobreviveu à peste bubônica para ortografar, com segurança, que “tudo vai dar certo, e todos os tipos de coisas ficarão bem”.
A prelecção tão simples, mas tão difícil, é que a vida pode ser saboreada ainda que permeada por dificuldades, decepções, perdas e até brutalidade. A escolha de ver sua formosura está disponível para nós a todo momento.
A história envolve Charlie e seu querido jogo de golfe. Muito tempo depois do falecimento de seus companheiros do Blue Hills Country Club, Charlie continuou jogando ao lado de homens muito mais jovens, que mal haviam pretérito dos 80 anos.
Um dia, ele se viu parado no green [área de grama mais curta, onde ficam os buracos], enquanto seu colega descia até um bunker de areia para fazer uma jogada com uma globo errante.
Qualquer tempo depois de o varão ter sumido de vista no fundo do bunker, Charlie viu um respingo de areia subir juntamente com a globo, e seu colega caiu e rolou até parar na extensão de treinamento. Depois… zero.
Depois qualquer tempo, Charlie foi até a beirada do green, deu uma olhada e viu o varão lutando, sem sucesso, para trespassar do buraco de areia. Charlie duvidou de sua capacidade de puxá-lo para fora. O que fazer? Não reagiu com preocupação ou soberbia. Não pensou: O que estamos fazendo aqui? Estamos velhos demais para isso.
Ele caiu na gargalhada, e continuou rindo até seu camarada morrer de rir também. Os dois ainda estavam rindo quando o grupo detrás deles chegou para resgatar o octogenário encalhado.
Charlie fez do viver uma arte. Entendeu, assim porquê os grandes artistas, que toda vida é uma promiscuidade de comédia e tragédia, alegria e tristeza, ousadia e terror. Escolhemos o texto de nossas vidas nessas notas conflitantes.
Mesmo quando sua força estava esmorecendo, quando o campo de golfe tinha se tornado um campo de obstáculos, quando a debilidade do progressão do tempo já não podia ser negada, Charlie escolheu transformar seu taco de golfe em uma bengala e portá-lo com desenvoltura.