A história de Milton Nascimento, nascido em 26 de outubro de 1942, no Rio de Janeiro, guarda em si um tanto de poesia. Filho da simplicidade, da força de uma mãe que não resistiu à doença. E da generosidade de uma avó que entregou seu neto ao amor de outra família. Milton traz em sua música um pouco desse destino bordado de encontros e saudades.
Quando algo o contrariava, ele fazia um bico tão característico que esse gesto virou seu apelido: Bituca. Isso ainda na infância, já em suas raízes em Três Pontas, interior de Minas Gerais, para onde foi com a família que o adotou.
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Milton nasceu em uma comunidade da Tijuca. A mãe dele se chamava Maria do Carmo do Nascimento. Trabalhava como empregada doméstica e fora abandonada pelo namorado enquanto esperava o menino.
Maria (Maria, Maria) morreu quando Milton tinha apenas um ano e meio. E ela, 26 anos. Voltara à sua cidade de origem, Juiz de Fora (MG), para evitar que o menino fosse contaminado. À patroa, dona Augusta, garantiu que retornaria quando estivesse curada. Naquele momento, ele ficou sob os cuidados de sua avó materna e de dona Augusta.
Maria não pôde mais voltar. E o destino, com sua dose de delicadeza, tratou de aproximá-lo de Lília Silva Campos, uma das filhas de dona Augusta, para quem sua avó trabalhava. Lília atuava como professora de música e, recém-casada com Josino Campos, dono de estação de rádio, enfrentava dificuldades para engravidar.
Lúcia se encantou por Milton e, junto ao marido, propôs adotá-lo. A avó aceitou a proposta com uma condição: que o nome da mãe permanecesse nos documentos do menino e que ele continuasse a visitá-la. Então ele conheceu Três Pontas, para onde foi com os pais. O apelido de Bituca. A música. A inspiração e a consagração pelos bailes da vida.
Lúcia havia estudado com o mestre Heitor Villa-Lobos. Aos quatro anos, ele ganhou uma sanfona de dois baixos; aos 13, um violão, e logo era crooner do conjunto Continental, um grupo de baile da cidade, onde começou a explorar sua voz diferenciada e a brincar com as harmonias.
Lúcia, que morreu em maio de 1998, e Josino, falecido em 2010, em Três Pontas, ainda adotaram mais um menino e uma menina, até ela ter engravidado e dado à luz a uma menina.
Parceria e carreira
Foi também em Três Pontas que nasceu a amizade de Milton com Wagner Tiso, seu parceiro musical ao longo de toda a vida. Os dois formaram o grupo W’s Boys, que se apresentava em festas e bailes, dando início a uma cumplicidade musical que transbordaria para suas criações e colaborações futuras.
Aos 20 anos, em 1963, Milton foi para Belo Horizonte com o objetivo de cursar Economia, mas a cidade rapidamente o envolveu no cenário musical local. Ele abandonou o curso e seguiu seu coração, imergindo na música e experimentando as composições que em breve conquistariam corações no Brasil e no mundo.
Em 1966, embarcou para São Paulo, onde buscava oportunidades, ainda que enfrentasse dificuldades para ser gravado. Tudo mudou quando conheceu Elis Regina, que, encantada com seu talento, gravou Canção do Sal e, mais tarde, abriu caminho para sua entrada nos festivais de música da época.
Na década de 1970, Milton, ao lado de amigos de Belo Horizonte, criou o Clube da Esquina. Lô e Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Tavinho Moura, Beto Guedes, Flávio Venturini e Toninho Horta integravam o coletivo. Os dois álbuns produzidos pelo grupo trouxeram inovações marcantes no estilo e nos arranjos. Fundiram canções regionais do interior brasileiro à influência das melodias dos Beatles.
Durante esses anos, Milton e seus parceiros começaram a enfrentar a censura do regime militar, que via em suas letras uma voz de protesto. Em 1973, seu álbum Milagre dos Peixes teve quase todas as letras vetadas, o que resultou em várias faixas apenas instrumentais.
Para contornar as restrições, Milton passou a se apresentar em eventos estudantis. Em 1978, ele foi o primeiro a gravar Cálice, com Chico Buarque, assim que a letra foi liberada.
Ao longo de sua trajetória, Milton gravou discos que se tornaram marcos da MPB, como Minas (1975), Geraes (1976) e Caçador de Mim (1981). Sua gravação de Coração de Estudante, em parceria com Wagner Tiso, tornou-se o hino das Diretas Já, em 1984, e um símbolo da luta pela democracia.
Brilho nas melodias
Milton também alcançou grande sucesso internacional. Em 1968, gravou Courage, e, em 1974, lançou o álbum Native Dancer com o saxofonista Wayne Shorter. Além disso, colaborou com renomados artistas, incluindo Pat Metheny, Herbie Hancock, Ron Carter, Mercedes Sosa, Fito Paez, Peter Gabriel, James Taylor, Sting, Paul Simon, Jon Anderson e Duran Duran.
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Nas últimas décadas, manteve-se ativo. Lançou álbuns e realizou shows. Ao todo, Milton gravou 34 discos e conquistou cinco prêmios Grammy. Em 2022, ao completar 60 anos de carreira, iniciou uma turnê de despedida. Encerrou uma jornada de apresentações marcada por seu talento inigualável e seu legado que o coloca entre os maiores.
Prosseguiu, no entanto, com as gravações, como a do álbum Milton + Esperanza, feita com a cantora norte-americana Esperanza Spalding, lançado em 2024. No trabalho, ele cantou, entre outras, Um Vento Passou (para Paul Simon), com o cantor Paul Simon interpretando em português.
Sua voz também retornou impactante em Mania de Você, de Rita Lee, para a novela de mesmo nome, da Rede Globo. Foi apresentada em uma remixagem de uma performance de 1998, feita com Rita.
A voz suave de Milton, que parece vir de paragens distantes, para lá das montanhas mineiras, toca os corações com delicadeza. Assim, ela se encaixou à sensualidade desta composição.
A mesma voz dos Bailes da Vida, de Maria, Maria, de Coração de Estudante traz um brilho a qualquer melodia. É a sua marca. A sua identidade, nesta travessia que extraiu beleza do início triste, inspiração no acolhimento e genialidade sem fim.