Começou nesta quarta-feira, com as manifestações de vários amici curiae, o julgamento no Supremo Tribunal Federalista sobre a constitucionalidade do item 19 do Marco Social da Internet e sobre novos possíveis modelos de regulamentação dos conteúdos publicados pelos usuários de mídias sociais. Ainda que nenhum voto tenha sido proferido até o momento, lembramos ontem neste espaço que consideramos bastante improvável que o STF faça o claro e deixe o tema para o Legislativo; e lembramos também que já existe um protótipo que goza da preferência de ao menos secção dos ministros, a ponto de já ter sido implantado pela Justiça Eleitoral em solução, e cujos riscos têm sido quase que totalmente ignorados por quase toda a prelo e formadores de opinião. Falamos do “dever de cuidado”, uma sentença simpática que camufla seu real efeito: impor às mídias sociais um “dever de censura”.
Enquanto o Marco Social da Internet prevê a derrubada de publicações específicas unicamente com ordem judicial, abrindo unicamente duas exceções para as quais bastam a notificação por secção do ofendido – a violação de direitos autorais e a divulgação não autorizada de fotos e vídeos de nudez ou com texto pornográfico –, o “dever de cuidado” coloca toda a responsabilidade sobre as empresas de tecnologia, que ficariam obrigadas a remover os conteúdos “proibidos” por conta própria, independentemente de ter decisão judicial ou mesmo reclamação de outros usuários, estando sujeitas a responsabilização caso não o façam. É exatamente isso o que diz um item enxertado pelo TSE em uma de suas resoluções sobre propaganda eleitoral, ao declarar que “os provedores de aplicação serão solidariamente responsáveis, civil e administrativamente, quando não promoverem a indisponibilização imediata de conteúdos e contas, durante o período eleitoral”.
“Dever de cuidado” é uma sentença simpática que camufla seu real efeito: impor às mídias sociais um “dever de censura”
O resultado desse tipo de imposição é evidente: uma terceirização da repreensão e o término, na prática, da liberdade de sentença nas mídias sociais. Para evitar qualquer tipo de responsabilização perante a Justiça, os moderadores (humanos ou digitais) tenderão a extinguir qualquer publicação que tenha o potencial, mesmo que mínimo, de originar qualquer problema. Críticas legítimas a comportamentos, críticas legítimas a pessoas públicas ou instituições, o debate lícito sobre temas espinhosos, tudo isso passa a percorrer sério risco caso o STF decida cristalizar no ordenamento jurídico o “dever de cuidado” que o TSE já impôs por meio de solução e que também aparece no PL 2.630/20, o “PL das fake news”, chamado também de “PL da censura”.
Que leste seja o pior dos cenários não significa que as alternativas sejam melhores. Se, em vez de impor o “dever de cuidado”, os ministros do STF resolverem ampliar os casos em que as mídias sociais ficam legalmente obrigadas a remover publicações de terceiros em seguida notificação – o chamado notice and takedown –, a situação não será muito dissemelhante. E podemos fazer essa previsão sem temor de errar graças à experiência internacional, pois a Alemanha introduziu o notice and takedown em sua legislação, permitindo casos bizarros porquê o bloqueio da conta de um representante da comunidade judaica por ter compartilhado o vídeo de um ataque antissemita contra o possessor de um restaurante em Berlim. Ainda que leste tivesse sido um caso extremo, ele reflete muito muito a disposição de extinguir conteúdos legítimos para não percorrer nenhum tipo de risco. O vestimenta de a legislação alemã ter sido a inspiração para leis de regulação da internet em ditaduras e autocracias porquê Rússia, Turquia e Venezuela mostra porquê também leste protótipo se encaixa porquê uma luva nas intenções de quem gostaria de banir discursos dos quais discorda.
Em geral, tanto o “dever de cuidado” e o notice and takedown, se forem adotados porquê padrão ou norma universal, entregam nas mãos das mídias sociais um poder enorme, o de definir o alcance da liberdade de sentença em determinado país. Aliás, a responsabilização por manter conteúdos no ar serve porquê incentivo totalidade ao uso desse poder para reprochar indiscriminadamente, sem nenhum incentivo para que as empresas de tecnologia atuem protegendo a liberdade dos usuários. Trata-se, ainda por cima, de uma maneira bastante perversa de controlar o exposição, pois as mídias sociais passam a agir porquê longa manus do Estado, que tem o bônus de ser o verdadeiro definidor do que pode ou não pode ser dito, enquanto se livra do ônus de ser diretamente assinalado porquê o responsável dos atos de repreensão.
Se a emprego generalizada dos modelos propriamente ditos já basta para constituir golpes mortais na liberdade de sentença, há um risco suplementar no caso brasílico, e que já foi evidenciado na redação do item 9.º-E da solução do TSE sobre propaganda eleitoral. Ministros do STF e representantes do governo, de setores militantes do Ministério Público e de movimentos identitários defendem publicamente o controle de publicações que reflitam “discurso de ódio”, “desinformação” ou “ataque às instituições”, para reportar alguns exemplos. Nenhum desses três conceitos está definido na legislação brasileira – e, sem isso, é irrelevante que a Advocacia-Universal da União use definições da União Europeia ou da ONU para caracterizar o que possam vir a ser “desinformação” ou “discurso de ódio”, pois nenhuma dessas definições impõe qualquer obrigação ao ordenamento jurídico brasílico.
Tanto no “dever de cuidado” quanto no “notice and takedown”, se aplicados porquê regra universal, o caminho para a repreensão está escancarado, mudando-se unicamente os censores
Na prática – e não o dizemos nem mesmo porquê hipótese, mas porquê vestimenta devidamente comprovado –, as três expressões serão usadas para forçar as redes sociais a extinguir (por conta própria ou sob provocação) qualquer publicação que possa desgostar um político, um militante identitário ou um ministro do Supremo. No “dever de cuidado”, as equipes de moderação das plataformas se tornarão “polícias do pensamento”; no notice and takedown, qualquer grupo minimamente organizado será capaz de rondar as mídias sociais e organizar campanhas de notificação para banir desafetos e ideias “desagradáveis”, classificando tudo porquê “discurso de ódio” e impondo aos provedores a obrigação lítico de remoção de conteúdos. A “manifestação crítica aos poderes constitucionais”, por exemplo, poderá até continuar não sendo violação, de conformidade com a Lei 14.197/21 (a dos crimes contra o Estado de Recta), mas tem tudo para se tornar censurável caso prevaleça a ideia destes que poderíamos muito muito invocar de “censores pela democracia”. Em resumo, tanto no “dever de cuidado” quanto no notice and takedown o caminho para a repreensão está escancarado, mudando-se unicamente os censores.
Nenhum desses modelos, portanto, representa o espírito do Marco Social da Internet – pelo contrário, eles o subvertem totalmente, pois matam a liberdade de sentença que o legislador quis preservar ao condicionar a retirada de conteúdos à prévia avaliação do Poder Judiciário. Aliás, esse vestimenta também demonstra o sem razão que seria uma enunciação de inconstitucionalidade do item 19, pois o texto atualmente em vigor não viola nenhuma garantia constitucional dos usuários enquanto protege uma das principais liberdades dos brasileiros. Alegar que o texto lítico viola a Epístola Magna unicamente para poder colocar em seu lugar o protótipo preposto de magistrados que não têm um único voto popular habilitando-os a fazer leis seria avultar mais uma categoria de desprezo pela democracia em um processo que já está bastante viciado por uma juristocracia bastante afeita à repreensão.