A gestão binacional da usina hidrelétrica de Itaipu – construída na fronteira do Brasil com o Paraguai na década de 1970 para fornecimento de energia elétrica aos dois países – abriu um precedente contra a transparência dos gastos públicos, que tornou o cofre da empresa uma “caixa-preta”.
Em vez de a empresa estatal, compartilhada por dois países, ser duplamente fiscalizada com a necessidade de atender os mecanismos de transparência das duas nações, o resultado é justamente o contrário: uma conta pública nebulosa sem a obrigação de divulgar dados que atendam às exigências da Lei de Acesso à Informação (LAI).
A brecha é uma consequência do acordo firmado pelos países parceiros na nota reversal nº 3/2021, que formaliza a intenção de criar um órgão supranacional de controle, a chamada Comissão Binacional de Contas. O grupo misto com representantes de Brasil e Paraguai, que seria responsável pela fiscalização de uma das maiores usinas hidrelétricas do planeta, nunca saiu do papel e o processo de formalização da comissão de transparência travou no governo Lula (PT).
O destino de bilhões de reais para convênios socioambientais na gestão petista foi o estopim para que a oposição e representantes do setor de energia elétrica retomassem a pressão pela criação do órgão de controle. Após a nomeação do deputado federal Enio Verri (PT-PR) como diretor-geral do lado brasileiro, no início do mandato presidencial de Lula em 2023, a Itaipu Binacional passou a ser acusada de administrar um “orçamento paralelo” com verbas encaminhadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e em benefício das causas indígenas, por exemplo.
Grupo para fiscalizar as contas de uma das maiores usinas hidrelétricas do planeta nunca saiu do papel.
A oposição no Congresso Nacional também questiona o uso partidário do orçamento para patrocínios de eventos, como a COP-30, o “Janjapalooza” e o convênio de R$ 752 milhões para a construção do campus da Universidade de Integração Latino-Americana (Unila), em Foz do Iguaçu (PR), sede da estatal do lado brasileiro.
Além de escapar da LAI, a Itaipu Binacional não precisa explicar o destino dos recursos para o Tribunal de Contas da União (TCU) no Brasil. A dupla nacionalidade protege em sigilo a senha de acesso ao cofre da empresa pública.
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Associação processa Itaipu por recusa na publicidade de salários de funcionários públicos
Confira:
- 1 Associação processa Itaipu por recusa na publicidade de salários de funcionários públicos
- 2 Itaipu descumpre tratados de direitos humanos ao negar informações
- 3 Itaipu justifica que possui “própria transparência” e resguarda dados sensíveis
- 4 Oposição reage com PEC da Itaipu, CPI e pedido de intervenção
A falta de transparência de dados da Itaipu Binacional em violação à Lei de Acesso à Informação (LAI) é alvo de uma ação civil pública movida pela Associação Fiquem Sabendo contra a empresa estatal, que corre desde o segundo semestre de 2024 na 1ª Vara Federal de Foz do Iguaçu.
A Fiquem Sabendo, organização especializada no acesso a informações públicas, afirma que Itaipu recusa dar transparência e publicidade à remuneração nominal dos agentes públicos de nacionalidade brasileira, o que, na avaliação da associação, é um dever jurídico reconhecido pelas Cortes Constitucionais do Brasil e Paraguai e tratados internacionais de direitos humanos.
“Embora possua um regime jurídico do tipo delesisso não significa que Itaipu está isenta de dar cumprimento a deveres básicos de transparência e responsabilidade decorrentes tanto da Constituição Federal de 1988 e tratados de direitos humanos dos quais a República Federativa do Brasil faz parte”, ressalta a Fiquem Sabendo na petição inicial do processo, que a Gazeta do Povo teve acesso.
Além de escapar da Lei de Acesso à Informação, Itaipu não precisa explicar o destino dos recursos para o TCU.
Em vigor desde 2012, a LAI obriga o poder público a divulgar nome, cargo e salário dos servidores e de funcionários comissionados. No entanto, a Itaipu Binacional não cumpre um dos requisitos mais básicos da transparência, de acordo com a legislação brasileira.
A associação lembra que Itaipu é a segunda maior hidrelétrica do planetacom orçamento anual estimado em US$ 2,48 bilhões em 2024, e pede a condenação da empresa pública em R$ 300 mil “a título de indenização por danos morais coletivos em virtude do desrespeito contumaz e reiterado de direito assegurado”.
Segundo informações da Justiça Federal do Paraná, o processo está em fase de conclusão, aguardando julgamento. Além dos salários, os nomes dos funcionários comissionados são de interesse público por causa das indicações partidárias, principalmente nas estatais que costumam ser utilizadas para acomodação política de aliados.
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Itaipu descumpre tratados de direitos humanos ao negar informações
Em entrevista à Gazeta do Povoo cofundador e diretor de Advocacy da Fiquem Sabendo, Bruno Morassutti, comentou que a Itaipu é um organismo formado com base em um tratado binacional, o que justifica um regime jurídico próprio para não ser influenciado pelas legislações de cada país.
Nesse aspecto, ele considera compreensível que a legislação nacional não se aplique à Itaipu, mas argumenta que Brasil e Paraguai são países que assinam tratados internacionais que reconhecem o acesso à informação como sendo um direito fundamental dos cidadãos.
Além de contestar o entendimento de que Itaipu estaria isenta da prestação de contas, ele ressalta que as decisões da empresa binacional impactam as economias dos países parceiros, principalmente no setor de energia elétrica. “Tanto a Suprema Corte do Paraguai quanto o STF reconhecem que os cidadãos têm direito de acesso à informação, inclusive sobre a remuneração dos agentes que trabalham em questões que dizem respeito ao interesse público”, acrescenta.
“Itaipu está descumprindo tratados internacionais de direitos humanos que garantem o direito de acesso à informação”
Bruno Morassutti, cofundador da Associação Fiquem Sabendo
Morassutti ainda destacou que o direito de acesso à informação existe antes da formalização da LAI no Brasil, que é signatário de convenções internacionais como a Americana de Direitos Humanos e das Nações Unidas de Direitos Civis e Políticos. “A empresa não pode se recusar a dar cumprimento a um direito reconhecido internacionalmente pelos dois países. Por isso, a Fiquem Sabendo está processando a Itaipu para que ela dê transparência às informações sobre remuneração.”
Na avaliação do diretor, a iniciativa para mudar esse cenário no Brasil deveria partir do presidente da Repúblicaque tem o texto concluído sobre o órgão fiscalizador de Itaipu, mas não encaminha o projeto de lei ao Congresso Nacional, apesar dos avanços do governo federal no país vizinho.
“O Paraguai chegou a um consenso em relação ao formato desse organismo, mas o governo brasileiro ainda não. Isso foi algo que a Fiquem Sabendo conseguiu apurar analisando as próprias comunicações disponíveis ao público entre os dois países”, revela Morassutti.
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Itaipu justifica que possui “própria transparência” e resguarda dados sensíveis
Procurada pela Gazeta do Povoa Itaipu Binacional respondeu que “tem como premissa o compromisso com a transparência” e atende aos requisitos previstos na “natureza jurídica especial”, com base no tratado internacional firmado entre Brasil e Paraguai em 1973. “Itaipu é uma entidade supranacional regida pelo direito público internacional, não integrando a Administração Pública brasileira, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal nas Ações Cíveis Originárias 1904, 1905 e 1957”, declara a empresa em nota.
A usina hidrelétrica argumenta que possui “norma própria de transparência”, que regula o acesso às informações institucionais publicadas no site oficial da empresa, “resguardando dados pessoais sensíveis, como a remuneração nominal de empregados, diretores e conselheiros”.
Por causa da gestão binacional, Itaipu afirma que os dados de recursos humanos seguem as “políticas de segurança pessoal e patrimonial”, previstas em acordo estabelecido pelos países parceiros. “Em relação ao controle externo, cabe destacar que, por se tratar de uma entidade binacional, Itaipu não está sujeita à jurisdição de órgãos de controle nacionais de forma unilateral, como o Tribunal de Contas da União. O acompanhamento das contas da empresa é realizado de forma conjunta, por órgãos designados por ambos os países, conforme estipulado no Tratado”, completa a hidrelétrica.
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Oposição reage com PEC da Itaipu, CPI e pedido de intervenção
No Congresso Nacional, a oposição cobra o governo Lula por mudanças para melhorar o controle das contas da Itaipu Binacional e pressiona a gestão petista por explicações que justifiquem os repasses destinados aos convênios socioambientais, sem relação com o setor de fornecimento de energia elétrica.
Em março, a deputada federal Adriana Ventura (Novo-SP) apresentou uma proposta de emenda à Constituição (PEC) para alterar o artigo 71 e permitir que o Tribunal de Contas da União (TCU) fiscalize diretamente os recursos de empresas supranacionais, como é o caso de Itaipu.
De acordo com a parlamentar, a emenda constitucional é importante para o controle externo dos gastos de Itaipu enquanto o assunto não for regulamentado por meio do tratado internacional entre os dois países. Questionada sobre a Comissão Binacional de Contas, Ventura respondeu que o processo foi deixado de lado pelo governo brasileiro durante a gestão petista.
“O processo de criação da comissão, que já não é fácil por depender do Executivo e do Legislativo dos dois países, fica ainda mais complicado com esse governo que não tem interesse algum em fiscalizar os gastos da empresa. O processo está parado no Executivo brasileiro e sequer chegou ao Legislativo. Assim, sem fiscalização, o governo brasileiro fica livre para gastar os recursos de Itaipu com o que ele quiser”, declarou em entrevista à Gazeta do Povo.
A deputada informou que obteve mais de 170 assinaturas de parlamentares em apoio à PEC. Ventura também publicou o painel de convênios e patrocínios da Itaipu no site da Frente Parlamentar de Fiscalização, Integridade e Transparência com dados sobre os gastos da empresa em versões mais acessíveis ao público.
“Enquanto isso, o que nos resta é pedir para o TCU fiscalizar os órgãos e entidades federais que recebem recursos de Itaipu – a empresa não pode ser fiscalizada, mas eles podem – e tentar aprovar leis que ao menos obriguem Itaipu a respeitar critérios mínimos de transparência e governança”, afirmou.
Além da PEC, o deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP) colhe assinaturas para criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) com o objetivo de investigar os gastos socioambientais da atual gestão. “Itaipu deveria ser um símbolo de eficiência energética e responsabilidade com o dinheiro público, mas infelizmente está sendo transformada em um instrumento político para financiar projetos ideológicos e campanhas eleitorais. Não podemos permitir que bilhões de reais sejam desviados enquanto a conta de luz da população só aumenta”, disse o deputado em nota.
Em fevereiro, o presidente da Subcomissão Especial da Itaipu, deputado federal Nelson Padovani (União-PR), entrou com um pedido de intervenção e fiscalização no TCU pelo uso político-partidário do orçamento da empresa estatal. “Em pouco mais de um ano, a Itaipu gastou R$ 43,8 milhões apenas em patrocínios a atividades não relacionadas à geração de energia elétrica e aos impactos socioambientais da usina. Em convênios com o setor privado, são mais R$ 749 milhões, entre 2023 e agosto de 2024, de direcionamento questionável”, aponta o documento.