Nesta semana, a revista britânica O economista revelou que o presidente americano Donald Trump cogita propor ao Brasil e à China enviarem militares em uma missão de paz para monitorar um eventual acordo de cessar-fogo na Ucrânia. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não deixou claro se aceitaria ou não uma proposta dessa natureza, comentando o assunto apenas de forma evasiva. O Brasil tem mais de 2,5 mil miltares prontos para participar de forças de paz e as demandas e os pedidos de ajuda não são apenas para a Ucrânia, mas também para países como Líbano e Síria. As tropas não são enviadas por falta de decisão política.
A última missão de paz em que o Brasil participou com contingentes superiores a mil soldados foi a missão de paz do Haiti. Ela ocorreu durante o mandato de Lula, entre os anos de 2004 a 2017. Ao todo quase 40 mil militares brasileiros atuaram na Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH).
Hoje, a principal participação brasileira é na MONUSCO, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização da República Democrática do Congo. O general de divisão Ulisses Mesquita Gomes assumiu o comando das tropas da ONU no país no último dia 19. Ele é assessorado por uma pequena equipe de brasileiros, mas a maior parte das tropas é de países africanos.
O general Ulisses tem como desafio proteger a população civil do país em meio a invasões de rebeldes patrocinados e apoiados diretamente por Ruanda e por Uganda. Analistas temem que o cenário atual evolua para uma guerra generalizada entre diversas nações africanas.
A reportagem apurou com fontes da cúpula das Forças Armadas que o país tem recebido sondagens informais sobre a possibilidade de enviar tropas para diversas nações em conflito sob a bandeira das Nações Unidas. As mais recentes demandas eram de uma equipe de engenheiros militares para o sul do Líbano para desarmar explosivos e representantes para uma possível futura missão de paz da ONU na Síria.
Esse tipo de sondagem é comum na estrutura da ONU, que depende de tropas de seus países-membros para montar suas missões de paz. Os passos seguintes são um pedido formal para o governo do país, o envio de missões de reconhecimento, o treinamento específico das tropas e, por último, o envio das tropas para o país em necessidade.
Essas etapas aconteceram, por exemplo, entre 2017 e 2018, quando o Brasil quase mandou tropas de paz para a República Centro Africana. Naquela ocasião foram enviadas ao país missões de reconhecimento, mas o governo do ex-presidente Michel Temer (MDB) decidiu cancelar o envio para concentrar os esforços dos militares na Intervenção Federal na segurança pública do Rio de Janeiro.
Em 2023, o então presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e o secretário-geral da ONU, Antônio Guterres, apelaram a Lula e instâncias do governo sobre a possibilidade de o Brasil liderar forças policiais multinacionais no combate a gangues criminosas no Haiti. O país mergulhava em uma onda de violência e milhares de pessoas morreram em conflitos entre grupos criminosos. Apesar dos pedidos, o Brasil não aceitou ao convite e missão foi liderada pelo Quênia, com ajuda de Antígua e Barbuda, Bahamas e Jamaica.
Decisão para missões de paz é política e fator ideológico pesa para governo Lula
Confira:
- 1 Decisão para missões de paz é política e fator ideológico pesa para governo Lula
- 2 Forças Armadas têm tropas treinadas e homologadas para partir a qualquer momento
- 3 Atuação de Brasil e China na Ucrânia é uma das opções cogitadas pelo governo Trump
- 4 Brasileira está em base cercada por tropas rebeldes no Congo
Ainda que a logística parta das Forças Armadas, bem como o treinamento e preparação de militares para atividades de paz das Nações Unidas, não cabe a elas decidir enviar tropas a outros países. À Gazeta do Povoa coordenadora-geral da Rede Brasileira de Pesquisa sobre Operações de Paz (REBRAPAZ), Eduarda Hamann, explica que essa decisão é política e parte do Executivo, ou seja, do presidente da República.
A especialista explica que diferentes agentes e atores participam dessa decisão. Diferentes pastas, como o Ministério da Defesa, o Ministério das Relações Exteriores e até mesmo o Ministério da Fazenda e as Forças Armadas. Porém, a decisão final cabe ao presidente da República e ela ainda precisa ser chancelada pelo poder Legislativo, por meio do Congresso Nacional. Mas, para isso, é preciso haver interesse por parte do Palácio do Planalto em colaborar com efetivos desdobrados.
“Essa é uma decisão do poder Executivo, que vai pensar na inserção do Brasil no cenário internacional e na projeção de poder do Brasil em determinada área. Vai pensar se o Brasil está no Conselho de Segurança ou não… A análise que esses atores políticos fazem e os fatores que influenciam a decisão nesse nível político, às vezes até fatores ideológicos, não vão ser os mesmos fatores que vão influenciar a decisão no nível das forças”, pontua Hamann.
Mas, além disso, analistas também avaliam que existem fatores operacionais e até financeiros que podem pesar para a decisão do governo. A falta de recursos e o aumento das despesas internas têm pressionado o Estado para cortes em pastas tidas como estratégicas, como é o caso da Defesa e das Relações Exteriores. Argumento tido como plausível, já que o apoio financeiro dado pela ONU não é suficiente para cobrir todos os gastos com o desdobramento e manutenção dessas tropas.
Por outro lado, as Forças Armadas têm um interesse em enviar tropas, pois essas missões oferecem uma oportunidade única de treinamento. “Ao Exército interessa mandar tropas (para operações de paz). Porque se tem uma oportunidade de treinar sua tropa para ser empregada em um ambiente de conflito real, que não é necessariamente simulado, e até mesmo para se preparar para um tipo de guerra”, pontua Hamann.
Forças Armadas têm tropas treinadas e homologadas para partir a qualquer momento
Embora a decisão final dependa do Executivo, as Forças mantêm suas tropas sempre prontas para possíveis envios ao exterior. O Exército Brasileiro, por exemplo, mantém 2.549 militares inseridos no Sistema de Prontidão das Capacidades de Manutenção de Paz da ONU (UNPCRS). Esses militares estão organizados em unidades com capacidades específicas, distribuídas em diferentes níveis de prontidão, numerados de 1 a 4, de acordo com a ONU. A Marinha mantém um sistema de mobilização similar.
Além disso, durante a missão de paz no Haiti, no iníco dos anos 2000, as Forças Armadas criaram o Centro Conjunto de Operações de Paz (CCOPAB), no Rio de Janeiro, que forma continuamente os militares conhecidos como capacetes azuis.
O professor Vitelio Brustolin, da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador da Universidade de Harvard, explica que essas missões de apoio à ONU são uma forma de projeção internacional para os países. “As Operações de Paz foram um jeito de o Brasil mostrar seu potencial internacional nos últimos anos”, avalia. Essa foi, inclusive, uma das ferramentas de projeção internacional adotada por Lula e Dilma em seus mandatos.
Foi nos governos petistas que militares brasileiros foram desdobrados em maior escala para atuarem nessas missões, a exemplo do próprio Haiti e do Líbano.
Atuação de Brasil e China na Ucrânia é uma das opções cogitadas pelo governo Trump
O presidente americano Donald Trump iniciou na semana passada tratativas para tentar negociar um cessar-fogo na Ucrânia. O plano completo de Trump ainda não veio a público, mas ele já descartou a possibilidade de entrada da Ucrânia na Otan (aliança militar ocidental) e sinalizou que Kyiv vai ter que ceder parte dos territórios conquistados por Moscou. Isso fez surgir propostas alternativas para garantir que, uma vez atingido o cessar-fogo, a Rússia não volte a invadir território ucraniano.
Países da Europa, como Grã-Bretanha e França, sugeriram o envio para território ucraniano de uma força europeia de cerca de 30 mil combatentes, que ficaria no interior do país, mas que teria capacidade para responder à altura a uma nova agressão da Rússia. Mas Moscou afirmou que não vai aceitar essa possibilidade.
Foi nesse contexto que a revista O economista afirmou que os Estados Unidos cogitam propor o envio de uma missão de paz composta por países europeus e não europeus, como Brasil e China, para a linha de frente. O papel dessa força não seria combater a Rússia em caso de agressão, mas apenas se posicionar entre os exércitos russo e ucraniano para evitar que eles quebrem o cessar-fogo.
Lula foi questionado sobre a possibilidade nesta semana, mas foi evasivo. Ele disse que o Brasil não mandaria tropas para a Ucrânia, mas poderia mandar uma missão de paz. Não ficou claro se ele queria dizer que tropas brasileiras só entrariam na Ucrânia dentro de uma missão de paz autorizada pela ONU ou se o país não enviaria militares em nenhuma hipótese à Ucrânia.
A reportagem apurou que a possibilidade causou dois tipos de reação na cúpula das Forças Armadas do Brasil. Parte viu no possível envio de capacetes azuis brasileiros um reconhecimento da eficiência brasileira em missões de paz.
Já outros oficiais enxergaram uma possível provocação. Isso porque o governo Lula apoiou no ano passado o plano de paz da China para a Ucrânia, que é considerado pró-Moscou. Esse tratado e uma postura pró-Kremlin do Brasil e da China fizeram com que a Ucrânia rejeitasse os dois países como interlocutores em um processo de paz. Assim, a sugestão desses dois países para mandar tropas junto com os europeus pode ser uma provocação de Trump ao governo ucraniano.
Outra preocupação levantada pela cúpula militar do Brasil é que os capacetes azuis dessa missão ficariam em uma posição muito frágil, pois poderiam ser atacados a qualquer momento pela Rússia. Isso poderia causar muitas mortes de brasileiros e chineses.
Brasileira está em base cercada por tropas rebeldes no Congo
O Brasil participa de missões de paz das Nações Unidas desde 1947, principalmente com auxílio diplomático às atividades. O início do envio de capacetes azuis para missões de paz foi em 1956, em Suez, e com policiais desde 1992. O envio de batalhões inteiros que ocorreu entre 2004 e 2017 no Haiti foi excepcional. Na maioria das missões da ONU, o Brasil participa com pequenos grupos de militares especialistas ou com observadores individuais.
A capitã Priscilla de Araújo Farias é uma dessas militares especialistas. Ela foi enviada à República Democrática do Congo e acabou ficando isolada em uma base da ONU em Goma durante a invasão do leste do país por rebeldes do M23 e tropas de Ruanda.
“aqui na missão eu sou oficial de assuntos civis no batalhão uruguaio. É uma missão muito gratificante, porque há um contato constante com a população. Infelizmente, tivemos que parar as nossas ações de assuntos civis e nos voltar a para a segurança do pessoal”, disse ela por mensagem de texto à reportagem.
Priscila organizava escolas de futebol para crianças e apoio a mulheres vítimas de violência sexual. Quando o M23 invadiu a cidade, no fim de janeiro, a base dela foi bombardeada e um colega militar foi morto. A cidade continua controlada por forças rebeldes, mas as bases da ONU deixaram de ser atacadas, pois a força principal de ataque dos rebeldes tenta atualmente invadir cidades mais ao norte.
A capitã disse que está bem e segue resistindo com seus colegas na base das Nações Unidas em Goma. Os militares da ONU no Congo esperam por uma resposta política do Conselho de Segurança da ONU em forma de sanções aos países que patrocinam e reforçam com suas tropas a campanha militar dos rebeldes.