A segurança pública no Brasil é um dos temas mais sensíveis e debatidos na atualidade, envolvendo aspectos que vão desde a necessidade de repressão eficiente ao crime até a proteção das garantias constitucionais dos cidadãos. Tornando o tema em um anfiteatro de ideias, ideais, crenças, ideologias, visões e perspectivas distintas. Mas o argumento de combate à criminalidade não pode servir como um instrumento de constante estado de exceção nas comunidades mais vulneráveis.
A sociedade não concede para as polícias um salvo-conduto ou procuração irrestrita para o Estado agir da forma que bem entender, cometendo atrocidades e violando massivamente os direitos fundamentais, sobre a ideia de combate ao crime. As crianças dos territórios socialmente vulneráveis que vão à escola não podem ser vítimas de disparos acidentais da arma de um agente do Estado. Os moradores das comunidades merecem e devem ser tratados da mesma forma que a população que mora nos condomínios luxuosos é tratada.
A Constituição Federal de 1988 estabelece que a segurança pública é dever do Estado e responsabilidade de todos. Quando ocorrem omissões ou abusos por parte dos entes públicos, cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF) exercer sua função de guardião dos direitos previstos constitucionalmente e intervir para garantir que a atuação estatal esteja em conformidade com os princípios democráticos, inclusive na área de segurança pública. Um exemplo disso é o caso Favela Nova Brasília, no qual o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) – órgão ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA), pela omissão do Estado na elaboração de um plano eficaz para reduzir a letalidade policial.
Desde a redemocratização, temos assistido o aumento do protagonismo do Poder Judiciário, fenômeno conhecido como a judicialização da vida social. Cada vez mais, conflitos antes resolvidos pelo Executivo ou Legislativo são levados ao Judiciário, incluindo questões relacionadas à segurança pública. Essa ampliação do papel do Judiciário pode ser explicada, em parte, pela complexidade crescente das demandas sociais e pela própria estrutura das sociedades constitucionalizadas, que conferem aos tribunais a missão de assegurar a eficácia dos direitos e garantias fundamentais. Paralelamente a esse fenômeno, muitos magistrados têm adotado uma postura mais ativa ao serem provocados a garantir que os direitos declarados na Constituição e nas normas infraconstitucionais sejam efetivamente aplicados.
O STF não interfere indevidamente no Executivo, mas o cumprimento do seu papel constitucional de garantir que as políticas de segurança respeitem a Constituição
No Brasil, essa atuação judicial tem sido especialmente visível no campo da segurança pública, no qual o STF tem sido constantemente demandado por atores institucionais legitimados – como partidos políticos e associações de classe – para tomar decisões que impactam diretamente a gestão das políticas de segurança. Esse movimento reforça a ideia de que a proteção governamental não pode ser tratada apenas como uma questão operacional das forças policiais, mas como uma política pública sujeita a princípios democráticos e ao controle jurisdicional.
Nesse cenário, a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) tem se mostrado essencial para garantir o equilíbrio de que a ação das forças de segurança ocorra dentro dos limites do Estado Democrático de Direito. O STF já decidiu que as guardas municipais fazem parte dos órgãos de segurança. No dia 5 de fevereiro, o STF suspendeu por três semanas o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 conhecida como “ADPF das favelas”, a ação foi proposta em 2019 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), denunciando um cenário de padrão de violações aos direitos garantidos constitucionalmente no Estado do Rio de Janeiro, portanto a judicialização da segurança pública decorre da inércia de gestores e da necessidade de estabelecer parâmetros para a atuação estatal.
O julgamento da ADPF 635 demonstra que o STF não busca enfraquecer os órgãos de segurança, mas garantir que operem conforme a lei. No voto do relator, ministro Edson Fachin, ficou evidente que, embora o governo estadual tenha adotado algumas medidas para reduzir a mortalidade decorrente de ações policiais, ainda há necessidade de complementação e monitoramento contínuo para assegurar sua efetividade, com medidas como independência das investigações sobre mortes ocorridas em operações policiais, garantindo que casos suspeitos sejam apurados por órgãos independentes, como o Ministério Público, evitando interferências internas; transparência nos dados dos sistemas de segurança, com a divulgação de estatísticas detalhadas sobre uso da força e óbitos decorrentes de ações policiais, incluindo informações sobre a corporação envolvida e o contexto das ocorrências; uso obrigatório de câmeras corporais, priorizando agentes de batalhões com maior índice de letalidade, para garantir maior controle sobre a atuação policial e reduzir abusos; afastamento temporário de policiais envolvidos em mais de uma ocorrência com morte em um período de um ano, medida baseada em estudo da Universidade Federal Fluminense que aponta a concentração da violência policial em determinadas áreas e agentes específicos.
A intervenção do STF na segurança pública do Rio de Janeiro tem produzido impactos positivos. Dados do Ministério Público do Rio de Janeiro indicam que, entre 2019 e 2023, o número de operações policiais (457 operações policiais oficiais) aumentou sem resultar em maior criminalidade. Pelo contrário, houve uma redução de 52% nas mortes por intervenção policial e uma diminuição significativa de homicídios dolosos, atingindo o menor índice desde 1991. Além disso, houve quedas significativas nos índices de criminalidade: roubos de veículos (-44%), roubos de rua (-57,2%), roubos de carga (-56,8%) e crimes letais (-18,4%).
Esses números desconstroem o argumento de que o controle judicial sobre a atividade policial compromete a proteção social. Pelo contrário, mostram que a adoção de parâmetros de transparência e controle permite que as forças policiais atuem de forma mais eficaz, sem recorrer a práticas que resultem em letalidade.
Nesse panorama, o STF não interfere indevidamente no Executivo, mas o cumprimento do seu papel constitucional de garantir que as políticas de segurança respeitem a Constituição. Ao estabelecer diretrizes para a atuação policial, o STF assegura que o Brasil não retroceda a um modelo ultrapassado de segurança pública baseado no uso excessivo da força, mas avance para uma política mais racional, eficiente e compatível com as normas constitucionais.
A verdadeira ordem pública não é aquela que diz que “bandido bom é bandido morto”, nem no arcaico “dente por dente”. A força do Estado na garantia da ordem não deve ser medida pelo uso excessivo da força, mas pela proteção cidadã, com a capacidade de garantir a proteção de todos os cidadãos instintivamente, com a consequente queda da criminalidade, sem jamais abrir mão do respeito à dignidade humana.
Arthur Richardisson Evaristo Diniz é advogado criminalista, conselheiro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e vice-presidente do Observatório Nacional da ABRACRIM Nacional; André Alisson Leal Teixeirapromotor de Justiça do MPDFT, conselheiro do CNPCP, ex-assessor de Ministro do STF e ex-promotor auxiliar do PGR.
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