Uma das maneiras mais simples de um dispositivo constitucional, uma liberdade individual ou garantia democrática cair no esquecimento é não haver ninguém que saia em sua defesa. A imunidade parlamentar por quaisquer “opiniões, palavras e votos”, presente no artigo 53 da Constituição, é um desses exemplos. O STF já resolveu que ela não existe mais no Brasil. A Polícia Federal também resolveu fingir que ela está abolida. E ambas as instituições podem se comportar dessa forma porque, no fim das contas, nem mesmo aqueles que deveriam estar diretamente empenhados na preservação dessa garantia a defendem como deveriam. É graças à covardia de representantes do povo como Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), respectivamente presidentes da Câmara e do Senado, que o avanço sobre a imunidade parlamentar tem sido tão bem sucedido.
Falamos, evidentemente, do absurdo caso em que o deputado Marcel van Hattem (Novo-RS) se tornou alvo de uma investigação realizada dentro de um inquérito sigiloso relatado pelo ministro Flávio Dino, do STF. O motivo seriam as críticas feitas por Van Hattem ao delegado da PF Fábio Shor, braço-direito do ministro Alexandre de Moraes na Polícia Federal, sendo responsável por relatórios que embasam decisões de Moraes contra apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro. Em um desses casos, por exemplo, o ex-assessor Filipe Martins passou seis meses preso por ordem de Moraes, apesar das abundantes provas de que Martins jamais havia feito a viagem aos Estados Unidos alegada pela PF e pelo ministro. Van Hattem, aliás, não foi o único a ter sua imunidade parlamentar violada: outro deputado, Cabo Gilberto Silva (PL-PB), está na mesmíssima situação, pelas mesmíssimas razões.
Se os presidentes da Câmara e do Senado não defendem a imunidade parlamentar, como esperar que ela sejam respeitada pelo STF ou pela PF?
É surreal que um parlamentar se torne alvo do braço punitivo do Estado apesar de todas as suas palavras estarem sob proteção constitucional, e apesar de tais palavras terem sido ditas da tribuna de sua casa legislativa. Não custa lembrar que o AI-5 nasceu justamente assim, da tentativa da ditadura militar de punir um deputado por um discurso feito da tribuna da Câmara. Mas, se em 1968 os deputados se levantaram altivamente na defesa de seu colega Márcio Moreira Alves, em 2024 nem Lira (que comanda a casa a que pertencem Van Hattem e Silva), nem Pacheco (presidente da casa que tem o dever constitucional de ser o freio aos excessos do STF), disseram uma única palavra a respeito da perseguição contra os dois deputados.
Van Hattem disse à Gazeta do Povo que conversou por telefone com Lira, e que o presidente da Câmara colocou a Procuradoria da casa à disposição dos dois deputados investigados. Mas isso não é muito diferente de um simples lavar as mãos. Que vários parlamentares tenham discursado em defesa dos colegas perseguidos é louvável, mas a voz do presidente da Câmara é indispensável nestes momentos. O artigo 17, VI, g do Regimento Interno da casa diz ser atribuição do presidente da casa “zelar pelo prestígio e decoro da Câmara, bem como pela dignidade e respeito às prerrogativas constitucionais de seus membros, em todo o território nacional”. Se Lira não vem a público denunciar a violação daquela que talvez seja a mais importante das prerrogativas constitucionais dos deputados, a imunidade parlamentar por quaisquer opiniões, palavras e votos, está descumprindo sua obrigação.
O mesmo dever, aliás, é atribuído ao presidente do Senado no artigo 48, II do Regimento Interno daquela casa, que é até mais explícito quando fala em “velar pelo respeito às prerrogativas do Senado e às imunidades dos senadores”. Ainda que o caso em tela não diga respeito a membros do Senado, isso não serve de desculpa para o silêncio de Pacheco; afinal, estamos diante de um ataque grosseiro à imunidade parlamentar como um todo, um modus operandi que poderia muito bem ter atingido um senador. E não exageramos quando dizemos que sem esta imunidade parlamentar não há democracia, pois, se deputados e senadores não são livres para falar, o debate público está interditado no locus onde ele deveria ser o mais livre possível. Não se trata de privilégio, mas de “garantia inerente ao desempenho da função parlamentar”, como afirmou em 2005 o então ministro do STF Celso de Mello. Jamais se pode ignorar que Marcel Van Hattem e Cabo Gilberto Silva estão sendo alvo do aparato persecutório estatal porque usaram da palavra para a fiscalização do poder público – difícil pensar em algo que encarne melhor a função de um parlamentar. É por isso que o silêncio de Lira e Pacheco neste caso é ainda mais vergonhoso que em qualquer outro caso anterior de perseguição a deputados e senadores.
É deste silêncio que se alimenta o arbítrio, como também já lembramos temos atrás. Se os presidentes da Câmara e do Senado não se levantam em defesa das prerrogativas dos deputados e senadores, como podem esperar que elas sejam respeitadas por ministros do STF que não perdem a chance de se afirmar como aqueles que mandam no Brasil, ou por uma Polícia Federal que também já dá por certo que a imunidade parlamentar não vale quando a corporação assim o desejar? O autoritarismo à brasileira não é obra apenas dos que exercem o poder ilimitado, mas também de quem deixou que eles chegassem aonde chegaram sem lhes opor resistência.