Médico, empreendedor, escritor e colunista de diversos veículos franceses, Laurent Alexandre se especializou em refletir sobre as revoluções tecnológicas e seus desafios na sociedade.
No livro ‘A Guerra das Inteligências na Era do ChatGPT’, recém-lançado no Brasil pela editora Amarilys, ele defende a ideia de que a IA chegou num mau momento da humanidade – pois ainda não estamos preparados para competir com um supercérebro artificial que se impôs tão rapidamente em diferentes áreas do conhecimento.
No trecho a seguir, Alexandre afirma que grande parte dos pensadores contemporâneos foram ingênuos com relação ao caráter supostamente libertador da internet. E explica por que a China, impulsionada pela inteligência artificial, já inaugurou uma nova era: a das tecnoditaduras.
O ano de 1992 marcou o pico da cegueira ocidental. Naquele ano, Francis Fukuyama, antigo conselheiro do presidente Bush, publicou ‘O Fim da História e o Último Homem’, onde proclamou que “não resta nenhum rival ideológico sério para a democracia liberal” após a queda do Muro de Berlim.
Segundo Fukuyama, a era da democracia liberal seria um céu de brigadeiro, muito calmo, calmo demais: “O fim da história será um período muito triste. Na era pós-histórica, nada restará senão a manutenção perpétua do museu da história da humanidade”. Em outras palavras, a única coisa a temer no futuro seria o tédio.
O colapso do império soviético em 1989 prenunciava uma era de apaziguamento pela unificação dos povos em torno do modelo ocidental da democracia liberal, que se tornaria a civilização universal. Desde 1992, porém, as coisas aconteceram de forma muito diferente.
Alguns observadores viram que o fogo ardia sob as cinzas. Logo após a publicação do livro de Fukuyama, outro autor adotou a opinião exatamente oposta. O professor de Harvard Samuel Huntington havia publicado em 1993, em resposta a Fukuyama, um artigo intitulado The Clash of Civilizations [‘O Choque das Civilizações’].
A tese de Huntington é que o mundo caminha para a fragmentação, para as clivagens e para as rivalidades, e não para a unificação e a paz.
“Se o século XIX foi marcado pelos conflitos dos Estados-nação e o século XX pelo enfrentamento das ideologias, o próximo século verá o choque das civilizações, pois as fronteiras entre culturas, religiões e raças são agora linhas de fratura.”
Huntington afirma que o erro de Fukuyama é profundo. Não, “modernização não é sinônimo de ocidentalização”.
Fukuyama não havia previsto que o digital iria dinamitar as antigas estruturas econômicas e políticas.
Os criadores da internet estavam convencidos de que a rede se tornaria a principal ferramenta de promoção da democracia, garantindo a liberdade de expressão a todos os habitantes da Terra.
O ciberutópico Nicolas Negroponte afirmou, em 1996, que os Estados-nação seriam profundamente abalados pela internet e que no futuro haveria tanto espaço para o nacionalismo quanto para a varíola. Projetamos nossas fantasias benevolentes na tecnologia.
A internet não criou a revolução política esperada. Esta não é a primeira vez que os amantes da tecnologia são ingênuos.
Em 1868, Edward Thornton, embaixador da Grã-Bretanha nos Estados Unidos, afirmou que o telégrafo se tornaria a força vital da vida internacional ao transmitir o conhecimento dos acontecimentos e eliminaria a raiz dos mal-entendidos, promovendo assim a paz e a harmonia em todo o mundo.
Em 1859, Karl Marx estava convencido de que a ferrovia eliminaria rapidamente o sistema de castas na Índia.
Em 1920, muitos tinham certeza de que o avião fortaleceria a democracia, a liberdade, a igualdade e suprimiria a guerra e a violência.
O inventor Guglielmo Marconi explicou que as comunicações sem fio tornariam a guerra impossível.
O presidente da General Electric afirmou, em 1921, que o rádio levaria a humanidade à paz perpétua.
Em 2009, os fundadores do Twitter [rebatizado como X] não explicaram – literalmente – que seu aplicativo levaria ao “triunfo da humanidade”?
“A revolução será tuitada”, publicou Andrew Sullivan no The Atlantic. O Los Angeles Times escreveu que o Twitter se tornaria o novo pesadelo dos regimes autoritários que não conseguiriam se manter perante o choque tecnológico.
Os utópicos chegaram ao ponto de dizer que a tecnologia tinha vocação para fazer melhor do que as Nações Unidas. No início dos anos 2000, alguns intelectuais propuseram atribuir o Prêmio Nobel da Paz à internet.
Imaginávamos que a internet continuaria sendo monopólio dos fundadores das empresas do Vale do Silício e seria a ferramenta que imporia os valores liberais ao mundo todo. O fetichismo tecnológico dispensou os intelectuais de refletir sobre a complexidade das interações entre a tecnologia, a política e a geopolítica
O Ocidente não percebeu de forma alguma o uso que os regimes autoritários iriam fazer das tecnologias da informação. A benevolência ingênua dos fundadores da internet impediu-os de compreender que esta é uma tecnologia em constante reconfiguração.
Cabe dizer que a web foi construída por uma elite de democratas libertários californianos, muito inteligentes, pacifistas, antirracistas e benevolentes.
Quando Francis Fukuyama explicou que o digital tornaria a vida impossível para os regimes autoritários, a revista Wired acrescentou que um teclado é mais poderoso do que uma espada e que a internet nos permitiria recuperar o poder dos governos e das multinacionais.
Enquanto se previa uma grande onda de democratização, estamos vivendo um florescimento de regimes autoritários.
A IA identifica um dissidente mil vezes mais rápido do que os agentes de inteligência tradicionais. As redes sociais são uma mina inesperada de informações para os regimes policiais.
O slogan “o PC é incompatível com o PC (Partido Comunista)” parece, em retrospectiva, muito ingênuo.
Nicholas Kristof, no New York Times, estava convencido de que, ao dar ao povo chinês uma internet banda larga de alta velocidade, o partido estava cavando sua própria cova. Os ocidentais em 2010 imaginavam que era impossível bloquear e censurar a internet de forma inteligente.
A crença era de que a censura seria inábil e ameaçaria o desenvolvimento científico, tecnológico e econômico ao proibir o acesso a grandes áreas do conhecimento humano. Na realidade, a personalização da web pela inteligência artificial permite hoje o surgimento de uma censura ultrassofisticada que não bloqueia nem a ciência nem os negócios chineses.
Essa utopia tecnológica era de uma ingenuidade impressionante. Estávamos redondamente enganados.
Controle de comportamento chinês é o mais elaborado da História
Longe de ser um freio ao seu domínio, a web impulsionada pela IA está, ao contrário, se tornando o reator nuclear de regimes autoritários. Pior ainda, alguns empresários, como Jack Ma, fundador do Alibaba, acreditam que a IA permitirá ao partido comunista chinês pilotar a economia melhor do que o mercado capitalista!
A democracia liberal que, 20 anos atrás, julgava ter vencido por nocaute todos os outros regimes, poderá voltar a ser minoritária no planeta; o autoritarismo digital avança a passos largos.
A China, sublinha [o economista e ensaísta francês] Olivier Babeau, “implementou no espaço de poucos anos o sistema de controle de comportamento mais elaborado e implacável da História”.
Intelectuais e pesquisadores libertários acreditavam que a tecnologia mudaria profundamente a natureza da humanidade. Na realidade, nossa violência e nossa estrutura hormonal mudam muito menos rapidamente do que a tecnologia.
Nossas paixões são projetadas diretamente no espaço digital – ódio, violência, desinformação, influência e contrainfluência.
O Estado poderá impor limites ao cruzamento de dados? Esses limites deveriam se tornar tão sagrados para nosso regime quanto a separação dos poderes.
Eles seriam pelo menos igualmente importantes para limitar a concentração do poder nas mãos de poucos, algo de que, como observou Montesquieu, todo homem está tentado a abusar.
Nem é preciso dizer que no momento não estamos seguindo o caminho de tal limitação. Edward Snowden revelou que os serviços de inteligência rastreiam o cidadão ocidental graças à colaboração das gigantes da internet.
Ninguém havia antecipado que mesmo os Estados democráticos desenvolveriam sistemas de controle e de bloqueio da vida digital dos cidadãos.
Contrariamente à visão de 1995, a internet fortalece o poder dos fortes e enfraquece os fracos. Acima de tudo, a revolução tecnológica fortaleceu sobretudo os tiranos.
Até o cocriador da web, Tim Berners-Lee, está desapontado, ao dizer para a Vanity Fair: “A web deveria servir a humanidade, mas é um fracasso em muitos aspectos”.
A Europa embarcou avidamente na tese do fim da História defendida por Fukuyama. Abraçou-a com prazer. Ela não indicava que o Ocidente era o eterno vencedor da história?
A partir de 1992, a Europa adormece, expande-se infinitamente, desarma-se, destrói suas fronteiras externas, deixa de investir, perde o interesse pelas novas tecnologias e torna-se um gigantesco Estado-providência, benevolente e solidário.
Resultado: a Europa de 2023 está perfeitamente adaptada ao mundo de 1823 depois do Congresso de Viena, que organizou o concerto das nações para regular a Europa pós-napoleônica.
Mas, de forma alguma, ao mundo tecnológico, cruel e instável que está chegando.