Em mais uma decisão que contribuirá para a impunidade daqueles que usaram mal o dinheiro dos pagadores de impostos e causaram prejuízo aos cofres públicos, o Supremo Tribunal Federal conseguiu piorar ainda mais o que o Congresso Nacional já havia danificado. Por maioria de 7 votos a 4, o plenário da suprema corte decidiu que é inconstitucional a modalidade culposa da improbidade administrativa, e com isso abriu as portas para a anulação de milhares de condenações que já haviam até mesmo transitado em julgado, com penas como a perda do cargo público e dos direitos políticos, além de multas.
Na redação original, a Lei de Improbidade Administrativa (8.429/92) tinha as modalidades dolosa – quando existe a intenção de lesar o erário – e culposa, quando o prejuízo aos cofres públicos é consequência de um erro não intencional do gestor. Era uma redação que refletia a preocupação crescente com casos de corrupção à época, mas que continha alguns riscos, como definições excessivamente abertas das possíveis irregularidades. Isso criou uma situação chamada de “apagão das canetas”: um gestor, para não correr o risco de ser responsabilizado, preferia não agir em vez de lançar alguma política pública que pudesse se mostrar fracassada mais adiante. A isso se juntou outro problema: o da ideologização de alas do Ministério Público, que passaram a pressionar gestores para impor determinadas práticas – ficou célebre o caso da promotora que impôs um cardápio vegano em cidades baianas, forçando prefeituras a assinarem Termos de Ajustamento de Condutas.
Impossível afirmar que a decisão do STF move o Brasil na direção do respeito aos princípios constitucionais que norteiam a administração pública
A Lei 14.230/21, no entanto, jogou o pêndulo para o lado oposto quando eliminou a improbidade administrativa culposa, exigindo “a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito” para se configurar a irregularidade. Isso certamente ajudou os gestores que agiam de boa-fé, embora não conseguissem os resultados desejados, mas também livrou os gestores que cometiam o que poderia ser chamado de “erro grosseiro”: “o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”, na definição de uma MP da época da pandemia que não chegou a ser votada pelo Congresso. Afinal, é diferente errar com boa-fé em situações que exigem resposta rápida, às vezes sem que nem existam informações que possam embasar uma decisão consciente, e outra coisa é errar sem a intenção de lesar o erário, mas ignorando deliberadamente dados científicos ou experiências anteriores.
Provocado a analisar essa mudança na Lei de Improbidade Administrativa em 2022, o STF a validou como uma opção lícita do Congresso, mas afirmou que as condenações já transitadas em julgado seriam mantidas, e que a mudança se aplicaria a todos os demais casos no futuro, inclusive os que já tramitavam na Justiça, mas sem decisão final. Agora, o plenário foi ainda mais longe: se a modalidade culposa sempre foi inconstitucional, a lei já tinha um vício desde a sua aprovação com a redação original. A conclusão óbvia é a de que as condenações com trânsito em julgado anteriores à mudança na lei jamais deveriam ter acontecido. A não ser que o acórdão, ainda por redigir, resolva manter as condenações nesses casos, isso abre as portas para que todos os condenados por improbidade culposa ao longo dos quase 30 anos decorridos entre a sanção da lei em 1992 e sua alteração em 2021 peçam a revisão de seu caso e tenham suas penas anuladas.
Prevaleceu, neste último julgamento, o entendimento do ministro relator, Dias Toffoli, que acaba de acrescentar mais um item à sua já extensa lista de decisões e votos que têm desmontado o bom combate à corrupção e favorecido o mau uso dos recursos públicos no Brasil. Seu argumento, seguido por outros seis colegas, foi o de que as punições previstas na Lei de Improbidade Administrativa são severas demais para que sejam aplicadas a casos que não envolvam a intenção deliberada de causar prejuízo aos cofres públicos. É difícil, no entanto, afirmar que desse raciocínio se conclui que haja algum princípio constitucional sendo violado. Pelo contrário, como afirmou o procurador Roberto Livianu: mesmo a modalidade culposa era condizente com o objetivo de garantir a “legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”, princípios norteadores da administração pública segundo o caput do artigo 37 da Constituição. Luís Roberto Barroso, que abriu a divergência, lembrou que em 2022 o plenário afirmou, ainda que implicitamente, a constitucionalidade da modalidade culposa ao manter as condenações com trânsito em julgado, e afirmou que o fim da improbidade culposa “decorre de opção legislativa legítima, mas não de imposição feita pelo artigo 37, §4.º, da Constituição”. Seu voto foi seguido por três outros ministros, sendo derrotado.
Quando mudou a lei, o Congresso Nacional passou de um rigor considerado às vezes excessivo para uma leniência certamente excessiva, em vez de criar uma gradação mais adequada e contemplar outros níveis de responsabilidade para não deixar impunes os casos de negligência, imprudência ou imperícia extremas, mesmo que sem intenção ilícita. Agora, o Supremo enterra de vez qualquer possibilidade de que a modalidade culposa seja restabelecida no futuro, ainda que com essa gradação. Quem ganha com isso não são os bons gestores, aqueles que já não poderão ser indevidamente responsabilizados por decisões equivocadas, mas tomadas de boa-fé, com o uso de todos os recursos disponíveis para embasar uma política pública; quem ganha são os gestores ineptos, que só podem invocar em sua defesa o fato de não terem tido intenção de prejudicar o erário, mas que se portaram com autêntica irresponsabilidade. Impossível afirmar que a decisão do STF move o Brasil na direção do respeito aos princípios constitucionais que norteiam a administração pública.