O texto do Regulamento de Mercados de Criptoativos (MiCA(1)), diploma lítico responsável pela regulamentação do mercado de ativos virtuais na Europa, que entrou em vigor em 30 de dezembro de 2024, – e que foi objeto de recente postagem no Livecoins(2) – apresenta preocupações sobre possíveis impactos negativos sob a privacidade dos usuários europeus no contexto de autocustódia e de transações p2p.
Embora o MiCA não trate diretamente sobre questões de prevenção à lavagem de quantia e de combate ao financiamento do terrorismo (AML e CFT) e, sim, sobre obrigações dos provedores de serviços de criptoativos (CASPs), que, no Brasil, são conhecidos uma vez que prestadoras de serviços de ativos virtuais (PSAVs), essa peça legislativa ele pode influenciar indiretamente as práticas dos CASPs europeus em relação às carteiras não custodiais.
Isso ocorre porque o Regulamento (UE) 2023/1113(3) exige que os os CASPs coletem informações detalhadas sobre as transferências de ativos virtuais, incluindo a identificação completa das partes envolvidas, mesmo em transações que envolvem carteiras não custodiais. Essas obrigações estão alinhadas às diretrizes do GAFI, que demandam maior rastreabilidade para prevenir lavagem de quantia e financiamento do terrorismo. Ou por outra, o regulamento impõe a premência de os CASPs verificarem a origem e o orientação dos fundos, mormente em transações transfronteiriças ou que envolvam carteiras de autocustódia.
Porquê consequência, os CASPs europeus enfrentam um aumento significativo nos custos operacionais, decorrente da implementação de sistemas de compliance robustos, monitoramento contínuo e relatórios regulares sobre atividades suspeitas. Isso não somente dificulta as transações anônimas, mas também desincentiva as interações com carteiras não custodiais, levando muitos CASPs a recusarem transações com esses endereços para mitigar riscos regulatórios e financeiros. Esse cenário pode resultar em uma menor competitividade dos CASPs europeus, incentivando os usuários do conjunto a migrarem para alternativas menos reguladas fora da União Europeia.
Jogadores do mercado europeu criticam que essas obrigações impostas pelo Regulamento (UE) 2023/1113 conflitam com propostas que se valem da utilização de tecnologias abertas e descentralizadas, uma vez que, por exemplo, a Lightning Networking. Essa abordagem regulatória, consequentemente, poderia colocar o mercado europeu em desvantagem competitiva em relação a outras regiões mais flexíveis e voltadas para a inovação. A já conhecida galhofa da internet de que “US innovates, EU regulates”, ganha ainda mais força nesse cenário, mormente com as novas propostas de desregulamentação defendidas por Donald Trump nos Estados Unidos, que poderiam correr ainda mais o ritmo de inovação tecnológica e atrair players globais para o menos restritivo mercado norte-americano.
E uma vez que fica o Brasil nisso? É de conhecimento universal que o Banco Medial lançou uma proposta (Consulta Pública n.º 111(4)), que, dentre propostas para regulamentar o mercado de ativos virtuais brasílico, cria diversas restrições às transações envolvendo carteiras autocustodiadas(5). Vejamos:
- “Art. 76-F. É vedado à prestadora de serviços de ativos virtuais efetuar transmissão de ativos virtuais para carteira autocustodiada detida por não residente.”
- “Art. 76-G. A prestadora de serviços de ativos virtuais deve implementar processos específicos para verificar a origem dos ativos virtuais transmitidos a partir de carteira autocustodiada pertencente a não residente.”
- “Art. 76-N. É vedado à prestadora de serviços de ativos virtuais efetuar transmissão de ativo virtual denominado em moeda estrangeira para carteira autocustodiada.”
Já me manifestei anteriormente no sentido de que o art. 76-F carece de fundamentação constitucional, pois viola frontalmente os princípios da livre iniciativa, isonomia, razoabilidade – além do recta de propriedade, refletindo uma visão paternalista do Banco Medial que subestima a capacidade dos detentores de ativos virtuais de gerenciarem e de disporem do seu próprio patrimônio da maneira que melhor entenderem.
É importante que observemos de maneira detalhada os próximos desdobramentos do mercado europeu e os eventuais impactos das regulamentações implementadas pelo MiCA sobre a competitividade global no setor de ativos virtuais. As medidas tomadas pela UE, com foco em restrições a carteiras não custodiais e transações descentralizadas, podem servir uma vez que um laboratório para entender os efeitos práticos advindos de uma regulamentação excessivamente rígida.
O Brasil, ao propor medidas semelhantes, uma vez que as previstas nos supracitados artigos 76-F, 76-G e 76-N, corre o risco de repetir esses erros e comprometer sua posição em um mercado altamente dinâmico e competitivo. É fundamental que as decisões regulatórias sejam tomadas com base em evidências e estudo de impacto, considerando não somente a segurança, mas também o incentivo à inovação, a soberania financeira dos indivíduos e a integração do país ao cenário global de ativos virtuais.
(1) Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32023R1114&qid=1735516575295
(2) https://livecoins.com.br/comparativos-sobre-regulamentacao-dos-ativos-digitais-na-ue-e-no-brasil/
(3) https://anti-money-laundering.eu/regulation-eu-2023-1113/
(4) https://www.gov.br/participamaisbrasil/consulta-publica-n-111
(5) https://livecoins.com.br/banco-central-proposta-regular-corretoras-criptomoedas-proibir-auto-custodia/