O governo voltou a prometer corte de gastos. Desta vez a sério, segundo a ministra Simone Tebet. Ela e o colega Fernando Haddad vão levar sugestões ao presidente Lula para economizar até R$ 50 bilhões por ano. A lista teria umas 30 iniciativas.
O pacote mal-embalado que a equipe econômica vazou para a imprensa é mais modesto. Nele há ideia óbvia, ideia que faz sentido e ideia que pode ser um desastre. Ainda que todas prosperem, o que parece improvável, dificilmente vão assegurar contas nos eixos no médio e longo prazo. São paliativas.
A proposta de combater supersalários do funcionalismo, limitando pagamentos acima do teto, é obrigação. Renderia uns R$ 5 bilhões por ano, calcula o governo. O efeito seria mais simbólico, de “cortar na carne” da elite do serviço público.
Mas é preciso combinar com o presidente do Senado. A Câmara aprovou projeto nessa linha, aquém do ideal, há três anos. Rodrigo Pacheco barrou e condicionou seu avanço à aprovação da PEC do Quinquênio – que vai na contramão e eleva ganhos de algumas das categorias mais bem-pagas, em especial no Judiciário.
Limitar o alcance do abono salarial faz sentido. O benefício, espécie de 14.º salário a quem já é protegido pela CLT, é visto como mal focalizado por especialistas. Restringi-lo a trabalhadores que ganham até um salário mínimo pode liberar uns R$ 250 bilhões no acumulado de uma década, calcula Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da ARX Investimentos. É medida impopular, porém. Paulo Guedes tentou emplacá-la na reforma da Previdência e o Congresso não deixou.
Mais barulho causa a ideia de reduzir o seguro-desemprego conforme o tamanho da multa rescisória – os 40% do FGTS pagos ao demitido sem justa causa. Já foi ventilado todo tipo de detalhe maluco nessa história, incluindo converter parte da indenização (dinheiro privado, devido pela empresa ao trabalhador) em imposto (a ser entregue ao Estado), algo que só não causa mais assombro porque nos acostumamos ao ímpeto arrecadatório do governo.
O objetivo de cortar repasses a quem perdeu emprego é desestimular a rotatividade, dizem. Todo mundo conhece exemplo de quem a cada pouco cava demissão ou faz acordo com o patrão para sacar essas verbas. Mas vá explicar esse desenho a quem está há mais de década no mesmo emprego e, pela lógica divulgada, sofrerá desconto maior. Depois de dias em silêncio, monitorando reações sem responder aos pedidos de confirmação feitos pela imprensa, o governo resolveu chamar tudo de “fake news”.
No meio disso tudo, não se vê intenção de atacar os maiores gastos ou os que mais cresceram nos últimos anos, nem desarmar bombas-relógio armadas pelo próprio Lula que ajudaram a empurrar as despesas federais para perto de 20% do PIB. Enfrentá-los exigiria coragem e apoio dentro e fora do governo. Ignorá-los significa admitir que, para equilibrar as finanças, será preciso subir ainda mais a arrecadação – se não agora, em algum momento adiante.
E que gastos são esses? Para onde vão os impostos que o contribuinte paga ao governo?
Quais os principais gastos do governo
O maior é a Previdência Social, que responde por mais de 40% das despesas primárias. Depois de alcançar o pico de 8,7% do PIB em 2020, essa rubrica recuou para perto de 7,9% nos dois anos seguintes, sob os primeiros efeitos da reforma promulgada em 2019. Mas voltou a crescer e logo no primeiro ano de Lula 3 chegou a 8,3% do PIB.
Um dos combustíveis para esse aumento é a retomada dos aumentos reais do salário mínimo, determinada pelo presidente. Especialistas calculam que essa política vai corroer grande parte da economia gerada pela reforma.
Como mais de 60% dos benefícios pagos pelo INSS equivalem ao piso salarial, o reajuste acima da inflação têm forte impacto. E Lula não admite desvincular mínimo e Previdência, muito embora todos os benefícios previdenciários acima do piso já sejam corrigidos apenas pela inflação.
Fora isso, há o envelhecimento da população. Não por acaso, o gasto previdenciário subiu o equivalente a 1,72 ponto porcentual (p.p.) do PIB desde 2010. Não fosse a Previdência, o total dos gastos federais teria até diminuído de lá para cá.
O segundo maior gasto é a folha salarial do funcionalismo, que em 2023 consumiu 3,4% do PIB. No governo Bolsonaro, essa despesa despencou 0,9 p.p. e atingiu o menor patamar da série histórica do Tesouro. Por trás disso está o congelamento dos salários e a não reposição de aposentados, combinação que Paulo Guedes chamava de “reforma administrativa silenciosa”.
Mesmo antes disso o quadro de pessoal vinha perdendo terreno no Orçamento federal, até em razão do avanço mais rápido de outros gastos. Se na virada do século o quadro de pessoal respondia por pouco mais de 30% das despesas do governo, hoje a fatia é de 16%.
Com a atual gestão retomando reajustes e contratações, a curva pode virar para cima novamente. A ministra da Gestão, Esther Dweck, trabalha numa reestruturação e alongamento de carreiras que pode poupar recursos no longo prazo, mas a pasta não revela o impacto das mudanças, talvez para não melindrar servidores e sindicatos.
Uma despesa que disparou há pouco tempo foi o Bolsa Família. Historicamente ele custava de 0,4% a 0,5% do PIB. Mas, ao passar de um tíquete médio de R$ 200 para R$ 600 no governo Bolsonaro (sob o nome de Auxílio Brasil), e se aproximar de R$ 700 sob Lula, o desembolso do programa mais que triplicou, batendo a marca de 1,5% do PIB em 2023.
Essa multiplicação é um dos fatores por trás do crescimento do consumo e da economia, mas tem um efeito colateral que vai além das contas públicas: passou a desestimular a busca por emprego formal, conforme constatou estudo do pesquisador Daniel Duque, da FGV.
O BPC, subsídio a idosos e pessoas com deficiência, oscilou por quase uma década entre 0,7% e 0,8% do PIB, mas agora se aproxima de 0,9%, impulsionado por afrouxamento de regras de acesso, decisões judiciais e aumento real do salário mínimo, ao qual o benefício é vinculado.
Despesas obrigatórias com saúde e educação avançaram no primeiro ano de Lula 3 e podem crescer mais. Vinham sendo corrigidas pela inflação desde a criação do teto de gastos, no governo Temer, mas sob Lula voltaram a ser vinculadas à receita. Ou seja: quanto mais a arrecadação cresce, o que deveria ajudar as finanças, mais esses gastos avançam.
Incluindo na conta a participação federal no Fundeb, que está aumentando por força de emenda constitucional aprovada há quatro anos, essas rubricas passaram de 1,4% para 1,6% do PIB apenas entre 2022 e 2023.
Enquanto isso, dois programas na mira do governo têm trajetória mais estável. Juntos, abono salarial e seguro-desemprego já custaram perto de 0,9% do PIB há dez anos, mas agora somam cerca de 0,7%.
Com o Orçamento engessado por desembolsos obrigatórios e inflado por outros de iniciativa do próprio governo, a tesourada recai sobre as despesas discricionárias, de livre manejo. Entre elas, os investimentos. Embora estes tenham subido após a posse de Lula, saindo do piso de 0,4% do PIB de 2022 para 0,7% em 2023, seguem um tanto abaixo dos patamares de 1,2% ou 1,3% do PIB observados até dez anos atrás, que já eram considerados insuficientes.
Importante observar que “só” o dinheiro do contribuinte não tem bastado para cobrir os gastos primários do governo. Mesmo com a arrecadação crescendo quase 10% acima da inflação, o governo admite que fechará o ano no vermelho, recorrendo à margem de tolerância para bater a meta fiscal.
Para cobrir os sucessivos rombos, a União vem pegando dinheiro emprestado quase sem trégua nos últimos dez anos. Como o governo não dá conta nem dos gastos primários (não financeiros), as despesas com os juros da dívida têm sido cobertas exclusivamente com receitas financeiras, isto é, mais endividamento. Não é pouca coisa: em 2023, os juros nominais corresponderam a 5,7% do PIB.