Em uma de suas últimas apostas para vencer as eleições para a prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos (Psol) acenou para o público – até então ignorado – dos trabalhadores autônomos e empreendedores individuais. A estratégia de sinalizar apoio ao empreendedorismo foi pensada para seduzir o eleitor da periferia que tem priorizado a iniciativa individual e a ideia de prosperidade.
Em uma “carta ao povo de São Paulo”, o candidato psolista reconheceu ter se distanciado da base de eleitores que fez da esquerda a força mais proeminente desde a redemocratização.
Tendo Lula como principal liderança desde sua fundação, o PT – berço do Psol – venceu cinco das nove eleições presidenciais disputadas desde a redemocratização, ancorado pelo forte movimento sindical e a promessa de um “socialismo à brasileira”.
Os tempos, no entanto, são outros. O PT saiu fragilizado das eleições municipais, embora tenha aumentado o número de prefeitos. Mas os partidos de centro e da direita, PSD e PL à frente, dispararam na aceitação do eleitorado.
O recado das urnas foi claro. Boulos teve mais votos que os adversários na região do centro, a mais rica da capital, e perdeu para Ricardo Nunes na periferia da zona sul, que havia garantido a vitória a Marta Suplicy (PT) na disputa de 2000.
Na zona leste, histórica periferia da capital, reduto de motociclistas de aplicativo e microempreendedores, o candidato do Psol perdeu para Marçal.
Boulos diz compreender que o mundo mudou. “Reconheço que, pelo nosso propósito de olhar sempre para os invisíveis, muitas vezes nós da esquerda deixamos de falar com tanta gente que também batalha, sofre o dia a dia das periferias e que buscou encontrar sua própria forma de ganhar a vida”, afirmou o candidato na carta.
Iniciativa de Boulos desvia da esquerda avessa ao empreendedorismo
Confira:
A carta em que Boulos reconhece a importância do empreendedorismo mostra o pragmatismo de sua campanha na tentativa de superar o concorrente, Ricardo Nunes (PMB), que tenta a reeleição.
O movimento atende à mudança de orientação das periferias confirmada por pesquisas. Um levantamento do Instituto Locomotiva com a população da classe C, divulgado pela revista Veja, revelou a profunda transformação do segmento.
Hoje essas pessoas defendem valores tradicionais e se preocupam com a expansão da violência, além de enxergarem o empreendedorismo como principal caminho para subir na vida – foi a opção citada por 56% dos entrevistados. Uma total desconexão, portanto, com ideais de Estado grande, pautas identitárias e leniência com a criminalidade, identificadas com a esquerda.
Mas nem por isso o movimento de Boulos agradou a base mais radical, que, por princípio, sempre rejeitou a ideia.
Para essa parcela mais aguerrida, o empreendedorismo alavanca o individualismo e enfraquece as lutas coletivas. É visto, portanto, como uma armadilha do sistema capitalista para iludir a classe trabalhadora com a perspectiva de ascensão.
Num debate histórico em 2016, a professora de filosofia da USP Marilena Chauí – ícone acadêmico da esquerda brasileira, que já havia declarado que “odeia a classe média” – desnudou de vez o pensamento sobre o tema.
“A ideologia do empreendedorismo infelizmente não é só da bancada da Bíblia [referindo-se a parlamentares evangélicos]. A quantidade de petistas que eu vi defendendo e propondo seminários sobre empreendedorismo, debates sobre empreendedorismo, a questão do empreendedorismo… Dá vontade de chorar, de pegar um punhal e enfiar na goela das pessoas”, afirmou ela na ocasião.
Na atualidade, um dos mais festejados sociólogos progressistas, Jessé Souza, ajudou a reviver a expressão “pobre de direita”, num livro que discorre sobre ideias conservadoras e liberais em meio às desigualdades sociais e raciais do país. Sua pergunta central é: “Como alguém, que tem seus direitos e dignidade tolhidos, pode defender formas de opressão que perpetuam sua condição?”
Empreendedorismo “bagunça” luta de classes que está no DNA da esquerda
Para Kayque Lazzarini, do Instituto Liberal de São Paulo (Ilisp) e líder do movimento Livres, a resistência à ideia do empreendedorismo está no DNA da ideologia.
“Eles entendem o mundo através de uma ótica de classes, de uma ótica de um oprimido contra o opressor”, explica. “São herdeiros de [Karl] Marx, [Friedrich] Engels e os chamados ‘socialistas utópicos’.”
Embora os conceitos pareçam distantes, a esquerda raiz, segundo Lazzarini, ainda convive com os ideais socialistas.
Jefferson Viana, do Ilisp e membro-fundador do Movimento Universidade Livre, explica que a resistência tem origem na Revolução Francesa. “Pensadores iluministas, como Robespierre, Saint-Just, Jean-Jacques Rousseau e Georges Danton, consideravam que o pequeno empresariado francês, como donos de café e de padarias, chamados de ‘pequenos burgueses’, não serviam aos ideais revolucionários”, diz, em artigo do Ilisp. “Foi o início das perseguições, no chamado ‘Período do Terror’.”
Ao longo tempo, afirma Lazzarini, os ideais foram sendo revistos. “Mais tarde, eles adotaram um método revolucionário para derrubar o estado burguês e acabar com a classe opressora”, afirma. “Depois adotaram o método democrático, adotando estratégias para obter avanços e melhorias. Mas não deixaram de acreditar nisso. E continuam por aí, nas universidades.”
Viana enxerga em aspectos da esquerda acadêmica um genuíno “ódio” ao empreendedorismo como meio de ascensão social.
“Esse ódio aparece porque o empreendedor vem normalmente das classes mais pobres da sociedade ou então da classe média da população, sentindo primeiramente os efeitos das políticas malfeitas por governos de esquerda, como, por exemplo, o aumento de impostos”, diz. “E são sempre os primeiros a se voltarem contra tais governos.”
Em todas as revoluções de esquerda, lembra Viana, sejam elas por via cultural ou pela via armada, busca-se desmerecer a imagem do empreendedor. “O argumento é que o pequeno empresário não é nada mais que um capitalista opressor, que visa o ‘famigerado’ lucro e que não deseja o bem comum da sociedade”, diz.
Discurso da esquerda não tem mais apelo popular
Sergio Praça, cientista político da Fundação Getulio Vargas (FGV-RJ), destaca que, apesar dos pilares fundadores, pregando mudanças políticas, econômicas e sociais como algo que cabe ser procurado e adquirido coletivamente, a esquerda tem se adaptado e procurado se modernizar.
“Essas propostas já não têm mais apelo”, afirma. “Claro que as nossas vidas se dão na prática de modo muito mais individual que coletivo. Parte da esquerda entende mesmo isso.”
Em relação ao empreendedorismo, a bola da vez, muitos partidos e movimentos de esquerda têm implementado ações para fortalecer a área, especialmente para micro e pequenas empresas. São iniciativas voltadas principalmente à facilitação do acesso ao crédito e incentivos fiscais e subsídios.
Como estratégia, buscam apoio à inclusão e diversidade, com políticas específicas implementadas para promover a participação de mulheres, minorias étnicas, pessoas com deficiência e outros grupos sub-representados.
Para Lazzarini, apesar de identificadas com a esquerda, muitas dessas pautas foram incoporadas da direita liberal. “A esquerda incorporou pautas progressistas que têm origem no liberalismo. Direitos humanos, direito das mulheres ou direitos individuais sempre foram pautas da direita liberal, que surgiu em contraponto ao Estado absolutista, que controla a vida das pessoas”, afirma.
Lula mostra pragmatismo aos novos tempos
O governo Lula, segundo Lazzarini, é um exemplo emblemático da adaptação da esquerda aos novos tempos. Desde 2002, quando fez sua “Carta ao povo brasileiro”, mirando o setor produtivo e o mercado financeiro, Lula mostrou que entende a necessidade de conciliar interesses.
“Foi eleito com doações de vários empresários e implantou vários programas do governo para ajudar grandes empresários, como a política dos campeões nacionais”, lembra Lazzarini.
Na atual gestão, Lula manteve o Pronampe e o Programa de Capital de Giro para Preservação de Empresas (CGPE), criados pelo governo Bolsonaro para oferecer linhas de crédito com condições favoráveis para pequenos empreendedores.
Na semana passada, em novo aceno ensaiado a esse público que o PT quer resgatar, o petista lançou o programa “Acredita”, que busca facilitar o acesso a crédito para diversos segmentos, em especial micro e pequenos empreendedores.
“É importante a gente lembrar que tem uma parte da sociedade que não quer ter carteira profissional assinada. As pessoas querem trabalhar por conta própria, querem ser empreendedoras, montar um comércio”, disse Lula.
A estratégia de Lula, desde 2002, tem dado resultados. Não quer dizer que vai funcionar com Boulos. Para Sérgio Praça, o psolista está atrasado e agora tenta se mostrar “mais moderno do que parece”.
“Você olha o Boulos e tem a imagem de Lula jovem”, diz. “Ele é identificado com movimentos sociais e ideias coletivas que são muito ultrapassadas. Tem uma identidade construída ao longo desses anos que contraria um pouco esse novo discurso.”
Para Lazzarini, o movimento de Boulos é apenas populista. “Ele é declaradamente socialista”, diz. “Se você perguntar para um apoiador genuíno do Boulos, ele vai dizer a mesma coisa. Querem um Estado gerido pela classe oprimida. Mas vão buscar adquirir resultados melhores em eleições. Como aconteceu em praticamente toda a América Latina onde a esquerda chegou ao poder pela via democrática.”