O futebol domina as conversas, as manchetes de jornais e as redes sociais dos brasileiros. É a paixão pátrio que pulveriza diferenças sociais, econômicas e ideológicas, ao tempo em que une torcidas em torno de um só propósito: reverenciar o espetáculo da globo. Nesse cenário de impetuosa emoção, os ânimos ficam à flor da pele e os torcedores não economizam nas comemorações nem nas queixas, principalmente quando entram em taxa os erros de arbitragem inerentes à falibilidade humana.
Há duas categorias de erro. Ocorre erro de vestuário quando o avaliador tem uma má visão da jogada ou enxerga equivocadamente um lance, mas aplica a consequência jurídica fixada pela norma, embora tenha partido de uma premissa fática equivocada. O erro de vestuário é geralmente revisto, quando provável, mediante a tecnologia, uma vez que o uso do VAR. De outro lado, existe erro de recta quando o avaliador visualiza perfeitamente os fatos, mas a eles aplica uma consequência jurídica proibida pela norma. Por exemplo, um gol olímpico anulado pelo avaliador por ignorância da regra.
A conduta do avaliador deve ser condenada quando se tratar de erro de recta relevante com o potencial de afetar a credibilidade das competições e combalir a crédito de todos os envolvidos no futebol brasílico
Enquanto o erro de vestuário reside numa percepção distorcida da verdade em razão das limitações dos sentidos humanos, o erro de recta decorre de uma emprego inadequada das regras da modalidade, seja por desconhecê-las, seja por ter aplicado consequência não prevista no enunciado lógico das regras do jogo (traduzido no silogismo: se P, portanto Q).
Essa forma de compreender as distinções entre erro de vestuário e erro de recta nas partidas de futebol toma de empréstimo as lições da tradicional dogmática penal. A semelhança com o Recta Penal é particularmente pertinente, porquanto erro de vestuário e erro de recta são categorias jurídicas que o Recta Desportivo tomou de empréstimo do Código Penal Brasílico antes da reforma legislativa de 1984, que os substituiu por erro de tipo e erro de proibição.
O Código Brasílico de Justiça Desportiva (CBJD) prevê, no seu art. 259, que deixar de observar as regras da modalidade constitui infração punível com suspensão mínima de quinze dias, sendo esse o “locus” do erro de recta no sistema desportivo brasílico. O Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) desempenha um papel fundamental na geração de precedentes e na uniformização do entendimento sobre o sentido e o alcance dessa norma.
Em primeiro lugar, o art. 259 somente deve ser aplicado em caso de erro de recta relevante, até mesmo em homenagem ao princípio da insignificância. Não basta que uma regra qualquer seja descumprida pelo avaliador para que o cláusula 259 do CBJD seja acionado. Logo, é descabido, por exemplo, declarar que um avaliador deve ser sentenciado por erro de recta quando não concede um tiro livre indireto cada vez que o goleiro controla a globo com a mão ou o braço por mais de seis segundos antes de repô-la em jogo. Enfim, essa regra dos seis segundos é solenemente descumprida e sua efetividade é deixada em projecto secundário no futebol mundial, de modo que sua inobservância pelos árbitros não constitui erro de recta relevante. Percebe-se que argumentos uma vez que esse estão radicados na retórica da redução ao contraditório, que consiste na técnica de chegar a conclusões absurdas e inaplicáveis para, numa traço argumentativa de trás para frente, concluir que a suposição original deve estar errada.
Em segundo lugar, a impugnação de partida em razão de erro de recta relevante pelos árbitros somente terá lugar quando, adicionalmente, tal erro tenha gerado consequências relevantes capazes de impactar diretamente o resultado da partida, conforme previsto no art. 259, parágrafo único, do CBJD. Nesse contexto, a mediação do STJD é crucial para testificar que a estudo seja feita de forma criteriosa e com parcimônia, visando à manutenção da justiça e da integridade das competições desportivas.
A conduta do avaliador deve ser condenada quando se tratar de erro de recta relevante com o potencial de afetar a credibilidade das competições e combalir a crédito de todos os envolvidos no futebol brasílico. Entretanto, a impugnação da partida requer a avaliação da seriedade do erro de recta em conjunto com o efeito prático direto dessa infração em relação ao resultado da partida. Quando a atuação do avaliador tenha sido flagrantemente equivocada à luz das regras da modalidade, e não se trate de erro de vestuário, o STJD pode e deve impor sanções ao avaliador responsável sem necessariamente prejudicar as equipes envolvidas, observando o princípio “pro competitione”.
A grandiosa história do futebol pátrio foi construída com desmedida dedicação profissional da arbitragem brasileira, que precisa ter sua poder resguardada, de modo que suas decisões em campo são definitivas e não devem ser modificadas pela Justiça Desportiva. À inalterabilidade das decisões tomadas pela arbitragem excetuam-se unicamente casos de infrações graves que tenham escapado à atenção da equipe de arbitragem, muito uma vez que casos de notório equívoco na emprego das decisões disciplinares, nos termos do art. 58-B do CBJD.
Zero impede, no entanto, que a inalterabilidade das decisões da arbitragem conviva com a possibilidade jurídica de pena dos árbitros pela Justiça Desportiva em caso de erro de recta relevante. O Recta Desportivo deve ser uma ciência viva a serviço do fortalecimento do futebol brasílico mediante a emprego técnica das regras, a garantia de segurança jurídica, a preservação da integridade das competições e a tutela da crédito de atletas, dirigentes, árbitros e espectadores.
Paulo Dantas é procurador-geral do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD); Gustavo Lisboa é procurador do STJD.
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