Quem acompanhou as redes sociais da gigante varejista Magazine Luiza na semana da Páscoa possivelmente ficou surpreso com a celebração em tom religioso da principal festa cristã. Apesar de as lojas da rede comercializarem ovos de chocolate, o assunto central nos canais digitais da empresa durante a semana foi o sentido religioso da data, e não o comercial.
“Jesus se entregou para te dar vida. Vida plena!”, diz uma publicação feita em 18 de abril, dois dias antes da Páscoa. “Ele venceu a morte para te dar vida. Hoje, sexta-feira santa eu te pergunto: você tem vivido o real propósito da vida?”, prossegue.
No mesmo dia, houve mais quatro publicações: um padre, um pastor e uma cantora evangélica trouxeram mensagens abertamente cristãs e, por fim, a dona da rede varejista, Luiza Helena Trajano, apareceu em um vídeo elogiando a campanha e falando sobre amor e fé.
O tom da campanha surpreende porque tanto a varejista quanto Luiza Trajano historicamente se posicionaram em um lado distante do conservadorismo. A dona da rede integra o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o chamado “conselhão” do governo do presidente Lula, e costuma fazer doações para campanhas de políticos de esquerda e centro-esquerda.
Já o Magazine Luiza há anos é lembrado por hastear bandeiras identitárias. Um dos episódios mais controversos envolvendo a empresa foi o lançamento, em 2020, de um programa de trainee exclusivo para pessoas negras. A iniciativa, que foi anunciada com o objetivo de promover diversidade racial na liderança corporativa, foi alvo de críticas e acusações de discriminação com outras raças.
Segundo fontes ouvidas pela Gazeta do Povoa nova estratégia da varejista pode ser reflexo do que um acionista da IBM recentemente classificou como um “realinhamento corporativo” nos Estados Unidos. A observação tem a ver com uma mudança significativa de posicionamento que grandes empresas norte-americanas têm passado, abandonando as chamadas “bandeiras woke” – militância racial, ativismo climático, pautas LGBTQ+, entre outros – e abraçando uma imagem mais amigável a consumidores conservadores.
Entre as gigantes da indústria, do varejo, da tecnologia e do entretenimento que recentemente anunciaram mudança de posicionamento estão Harley-Davidson, Ford, Jack Daniel’s, Boeing, Walmart, Disney e McDonald’s.
Empresas brasileiras ainda não acompanham com força a onda norte-americana
Confira:
Se a onda “antiwoke” entre empresas norte-americanas cresce dia após dia, não é possível dizer o mesmo em relação ao Brasil. A própria Magazine Luiza não mudou drasticamente sua comunicação, apenas inseriu novos elementos, possivelmente de olho em uma tendência mundial mais conservadora.
“Apesar de não mudar a ideia de diversidade, a empresa está procurando um reposicionamento de marca para atingir um público que mostra crescimento. Muitas outras empresas estão começando a perceber que precisam ter uma comunicação capaz de engajar esses consumidores”, explica Alexandre Chaia, economista e professor do Insper.
O termômetro que tem medido a mudança de posicionamento das empresas norte-americanas é o enfraquecimento ou mesmo a suspensão das políticas chamadas DEI – Diversidade, Equidade e Inclusão. Essas políticas entraram com força em grandes corporações nos últimos anos com o crescimento do modelo ESG (sigla para Ambiental, Social e Governança, em português) – conjunto de critérios usados para avaliar a responsabilidade social e ambiental de uma empresa, que é visto por setores conservadores como uma interferência ideológica nos negócios.
No caso da Magazine Luiza, não houve mudanças em relação a essas políticas. Não há, aliás, notícia de grandes empresas brasileiras que tenham anunciado a suspensão de políticas DEI.
Pelo contrário: em janeiro deste ano, quando mais multinacionais anunciavam publicamente revisões de posicionamento, a Natura – empresa brasileira de cosméticos – publicou um manifesto reafirmando sua política voltada a temas sociais e ambientais. “Não há mais tempo para retrocessos”, dizia a nota. Dias depois, a rede de supermercados Carrefour fez uma manifestação parecida, citando a “coragem de lidar com as resistências”.
Cultura woke está perdendo espaço para a meritocracia, diz executiva da Vale
Apesar do silêncio entre as grandes corporações brasileiras, a vice-presidente executiva de Recursos Humanos da Vale, Catia Porto, afirmou recentemente que a cultura woke está perdendo espaços em todas as grandes empresas, e que as políticas de recursos humanos estão, cada vez mais, voltadas à meritocracia e à excelência.
“Ao contrário do DEI, que foca na diversidade como elemento chave, tem um novo movimento chamado MEI (Mérito, Excelência e Inteligência), que enfatiza uma combinação de mérito e altos padrões de desempenho juntamente com habilidades intelectuais”, disse a executiva em uma publicação nas redes sociais, em fevereiro.
“E quem entende movimentos sabe que ou você se adapta rapidamente e surfa a onda de forma mais tranquila ou vai ficar na lanterninha, no grupo que reclama, resiste e não sai do lugar”, prosseguiu.
Fator Trump intensificou reação à cultura woke em empresas dos EUA
Para especialistas ouvidos pela reportagem, o retorno da popularidade de Donald Trump – desde o período pré-eleitoral até a vitória nas urnas em janeiro deste ano – explica parte das mudanças no cenário norte-americano, que podem se refletir em outras nações.
“Não é algo que está acontecendo só no meio corporativo, mas na sociedade como um todo. Há uma desilusão com o modelo progressista, de inclusão, de sociedade mais diversificada, que tem como pano de fundo a economia”, explica Alexandre Chaia.
Para ele, há um avanço global de uma visão mais à direitaque é consequência de seguidas crises econômicas e frustrações com modelos de gestão e escândalos de corrupção de governos alinhados à esquerda. “É algo que vem acontecendo desde a crise global de 2008. Junto com isso, as redes sociais ajudaram nesse movimento pendular pendendo para o conservadorismo. Sempre há um fator econômico que influencia essas mudanças”, diz Chaia.
O economista, entretanto, descarta uma mudança de posicionamento massiva e permanente pró-conservadorismo no meio corporativo. “Não acredito em uma mudança de longo prazo nessa linha. Nos Estados Unidos tudo está muito atrelado a Trump, e depende da sustentabilidade das políticas dele. E como a economia levou as pessoas a se desiludirem com a globalização, por exemplo, há o risco de novas desilusões econômicas”, afirma.
Reflexo mais amplo em empresas brasileiras ainda é incerto
Para Achiles Junior, doutor em Tecnologia e Sociedade e professor de Gestão em Marketing no Grupo Uninter, o mercado global demonstra uma saturação da “novidade woke”, e é natural que haja um realinhamento no meio corporativo.
“Muitas empresas entraram nesse movimento por uma questão de tendência, entendendo que o mundo estava indo para esse lado, mas o comportamento do consumidor é cíclico e há alguns anos vem mostrando mudanças”, explica.
O professor acredita que as novidades no mercado norte-americano devem se refletir no Brasil, mas não imediatamente. Para ele, mudanças mais concretas dependerão do resultado das eleições de 2026. “Vejo como uma questão de tempo isso ecoar em outros países que têm reflexos da cultura americana, como é o caso do Brasil. Isso é natural do mercado. Mas aqui o resultado das urnas pode indicar uma direção, e algumas empresas costumam se basear nesse tipo de tendência”, diz.
Achiles pontua, entretanto, que há riscos para empresas que levantam bandeiras ideológicas de forma mais acentuada. “Em um primeiro momento ela até consegue conquistar novos mercados, mas são raros os casos em que uma marca se posiciona para um lado ou para o outro, politicamente falando, e tem sucesso a longo prazo”, afirma.