Um homem problemático e violento, afeito a experiências sexuais excêntricas, porém consensuais? Ou o operador de uma organização criminosa que usava seu poder e influência para explorar mulheres?
Esta é a dúvida que paira sobre o julgamento do rapper, produtor e magnata do entretenimento Sean “Diddy” Combs”, iniciado na segunda-feira (12), em Nova York. Preso desde setembro de 2024, ele está no centro de um conjunto grave de acusações: tráfico sexual por meio da força, fraude, coerção, conspiração para extorsão e transporte para fins de prostituição.
O artista, no entanto, declara-se inocente, e inclusive recusou um acordo com a promotoria. Mas, caso seja condenado, pode pegar de 15 anos de reclusão até prisão perpétua.
Conhecido na década de 1990 como Puff Daddy, o novaiorquino Combs, de 55 anos, construiu uma carreira premiada na música antes de expandir suas atividades para o mundo dos negócios. Seu império comercial, que chegou a valer US$ 740 milhões (cerca de R$ 4,1 bilhões), inclui grifes de moda, marcas de bebida, produtos de Cannabis e formatos de reality shows.
Segundo os promotores, foi justamente por trás dessa fachada de sucesso e prestígio que Diddy comandou, por duas décadas, uma “empresa criminosa” voltada para “abusar e coagir” mulheres. A acusação ainda pinta um quadro sombrio da personalidade de Combs — definido como um indivíduo “controlador, manipulador e agressivo”, que usava armas de fogo e vídeos comprometedores para ameaçar suas vítimas.
Óleo para bebê
Confira:
Presididas pelo juiz Arun Subramanian (nomeado pelo ex-presidente Joe Biden e primeiro magistrado de origem sul-asiática a ocupar essa cadeira), as sessões devem se estender por até dez semanas. O júri, selecionado por ele entre 100 pessoas, é composto por oito homens e quatro mulheres, de idades e profissões diversas.
O time de acusação, liderado pela promotora Maurene Comey (filha de um ex-diretor do FBI), conta com uma característica simbólica: sete de seus oito integrantes são mulheres. Além disso, todas elas têm grande experiência em casos federais de abuso sexual.
Já a equipe da defesa é encabeçada pela dupla Marc Agnifilo e Teny Geragos. Agnifilo esteve à frente do controverso caso que envolveu a seita de escravas sexuais NXIVM, enquanto Geragos carrega o legado de seu pai, um advogado atuante em processos relacionados a celebridades.
A base das acusações gira em torno das chamadas Freak offs — festas “selvagens” marcadas por performances sexuais que chegavam a durar dias. Movidas a drogas como cocaína e ecstasy, as orgias envolviam mulheres atraídas por Combs, convidados (muitos deles famosos) e “acompanhantes” masculinos.
De acordo com os promotores, Combs coagia as vítimas a ter relações com esses prostitutos. E, quando não participava, masturbava-se assistindo aos bacanais.
No ano passado, quando as autoridades realizaram buscas nas mansões do rapper, um detalhe em especial chocou o público: ele mantinha um estoque de mais de mil frascos de óleo para bebê (a serem usados como lubrificante íntimo em futuros eventos).
“Estilo de vida swinger ”
Marc Agnifilo e Teny Geragos apostam numa estratégia clássica em casos de defesa de celebridades: admitir o excesso, mas negar o crime.
“Sim, houve episódios de violência doméstica, e eles são indefensáveis. Contudo, isso não tem nada a ver com as acusações de tráfico sexual e extorsão”, afirmou Geragos no início do julgamento.
De forma geral, a defesa tenta encaixar as atitudes de seu cliente num “estilo de vida swinger” — em que todas as atividades sexuais são consensuais e praticadas por adultos conscientes.
Outro plano traçado por Agnifilo e Geragos consiste em questionar a motivação das dezenas de mulheres envolvidas no processo. Eles sugerem que algumas delas buscam dinheiro em vez de {{aqui}}, enquanto outras foram estimuladas pelo ciúme, pois se sentiram traídas por Diddy.
Resumindo: os advogados tentarão convencer os jurados de que eles não devem avaliar Combs por suas preferências sexuais, mesmo se as considerarem repugnantes.
“Olhar diabólico”
O problema, para os defensores, é que o julgamento já começou marcado por depoimentos chocantes — e com descrições extremamente gráficas, a ponto de levar as filhas do réu, presentes na galeria, a sair do recinto algumas vezes.
A primeira testemunha foi Israel Florez, ex-segurança do hotel InterContinental, em Los Angeles, e hoje policial do departamento local.
Ele relatou, em detalhes, um episódio ocorrido em 2016 e registrado pelas câmeras do circuito interno. Exibido para os jurados, o vídeo mostra o rapper agredindo sua namorada “oficial” da época, a modelo, cantora e atriz Cassie Ventura.
Florez contou que foi chamado para atender uma “mulher em perigo” e encontrou Cassie ferida, com um olho roxo e várias escoriações no corpo — enquanto Diddy a chutava e a arrastava pelos cabelos no corredor do hotel. Ele ainda lembrou do “olhar diabólico” do empresário durante o ataque, além de acusá-lo de oferecer dinheiro em troca de seu silêncio.
Em seguida, foi a vez do testemunho de Daniel Phillip, um michê e dançarino contratado para vários Freak offs promovidos pelo artista. De acordo Philip, Combs chegava a pagar até US$ 6 mil (R$ 33,6 mil, na cotação atual) por encontro, desde que ele seguisse rigorosamente suas instruções perversas.
O prostituto ainda descreveu situações envolvendo o uso desmedido de drogas, tentativas de suborno e mais cenas de violência física contra Cassie Ventura — que incluíam tapas e até garrafas arremessadas contra a modelo.
Rituais de humilhação
O depoimento mais esperado, obviamente, foi o da própria Cassie, que chegou ao tribunal grávida e acompanhada do marido. Hoje com 38 anos, ela afirmou ter recém-completado 22 quando ingressou no universo degradante das festas organizadas por Diddy.
Ventura falou sobre ser colocada em “posições comprometedoras com estranhos” e se sentir “louca, humilhada e nojenta” ao ser gravada pelo ex-namorado. Também nomeou alguns acompanhantes (todos eram “catalogados” em um fichário de argolas) e detalhou parte da logística dos eventos.
Segundo ela, as orgias eram praticamente rituais de humilhação, realizados em salas iluminadas por velas vermelhas e com forte odor de “urina e óleo de bebê”. “Ele gostava que nossos corpos brilhassem”, disse.
Cassie também confirmou a informação de que os bacanais podiam durar dias, e revelou consumir drogas ilícitas e medicamentos para dor em tempo integral. “Não havia espaço para fazer mais nada além de me recuperar e tentar me sentir normal novamente.”
Sobre os surtos de violência de Combs, a modelo contou que ele poderia mudar de humor em questão de instantes. “Se eu fizesse uma cara ‘errada’, já estava levando um soco.”
E o “círculo de confiança”?
Nestes primeiros dias de julgamento, o viés conservador da cobertura tem chamado a atenção dos especialistas que acompanham a mídia americana. Para eles, trata-se de um reflexo do novo momento político de um país cada vez mais cético em relação às elites culturais e corporativas.
Em outra frente, analistas já começam a especular sobre possíveis desdobramentos do processo, que pode se estender para além do próprio Diddy. Afinal, a promotoria federal tem batido muito na tecla de que a “empresa criminosa” do rapper só perdurou por 20 anos graças à colaboração de um “círculo de confiança”.
Espera-se, portanto, que outros participantes do esquema, ou pessoas coniventes com ele, também sejam denunciadas. O que abrange, além de funcionários e parentes de Combs, gente graúda do mostrar negócios — incluindo celebridades que certamente surpreenderão o público.