“Enquanto Judiciário, enquanto suprema corte, nós somos editores de um país inteiro”, afirmou o logo presidente do Supremo Tribunal Federalista, Dias Toffoli, em julho de 2020, entregando a avidez (que, diga-se de passagem, não era exclusividade sua) de fazer do STF o governo de facto do Brasil – para que não ficasse qualquer incerteza a esse reverência, em 2021 o mesmo Toffoli ainda afirmou que “nós já temos um semipresidencialismo com um controle de poder moderador que hoje é exercido pelo Supremo Tribunal Federal”. Nesta quinta-feira, o ministro mostrou uma vez que é que ele gostaria que tal poder fosse exercido: por meio de restrições severas à liberdade de sentença dos brasileiros, ou, em outras palavras, increpação.
Relator de uma das ações sobre a constitucionalidade do item 19 do Marco Social da Internet, Toffoli ignorou o óbvio – que o texto em questão zero tem de inconstitucional, pelo contrário: é uma proteção a garantias basilares em qualquer democracia – e não exclusivamente votou pela sua derrubada, mas já se apressou a expressar o que gostaria de ver no lugar. Uma vez que legislador que não é, propôs uma série de novas regras que, a muito da verdade, não são nenhuma surpresa a julgar pelo comportamento recente de praticamente todos os ministros do STF que, em qualquer momento do pretérito recente, tiveram de deliberar um tanto relativo à liberdade de sentença no Brasil.
A imposição do “dever de cuidado” e do “notice and takedown” nos moldes propostos por Toffoli será o termo da liberdade de sentença nas mídias sociais
O ministro substituiu a exigência de decisão judicial uma vez que requisito para que haja responsabilização das mídias sociais por outro padrão, o de “dever de cuidado”, no qual o provedor tem a obrigação de inspeccionar e extinguir todo teor que esteja no índex supremo, dispensando premência de decisão judicial e até mesmo de notificação por eventuais ofendidos. É o caso, por exemplo, do racismo e da instigação ou auxílio ao suicídio ou à automutilação, ambos crimes devidamente tipificados no Código Penal. Mas o ministro foi além e estabeleceu também que os provedores são obrigados a tirar do ar manifestações que nem constituem transgressão no ordenamento jurídico brasiliano: é o caso da “divulgação de fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que levem à incitação à violência física, à ameaça contra a vida ou a atos de violência contra grupos ou membros de grupos socialmente vulneráveis”, e da “divulgação de fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados com potencial para causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral” – neste último caso, trata-se de mero “copia e cola” de uma solução do Tribunal Superior Eleitoral atualizada em 2024. Para casos de crimes contra a honra ou violações da privacidade e da intimidade, Toffoli ainda votou pela adoção do “notice and takedown”, o padrão no qual o provedor passa a ser responsabilizado se mantiver no ar os conteúdos denunciados por meio de notificação.
O voto de Toffoli e sua leitura no plenário do STF estão repletos de momentos constrangedores. Perceba-se, por exemplo, que na “lista da censura” estão crimes que só têm uma vez que ser cometidos mediante atos – é o caso, por exemplo, dos crimes contra o Estado Democrático de Recta. Toffoli não impôs o “dever de cuidado” aos casos de incitação ou apologia a tais crimes (ambos previstos nos artigos 286 e 287 do Código Penal, respectivamente), mas aos atos em si, uma vez que se fosse verosímil, por exemplo, “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído” com textões em perfis de mídias sociais. E, em uma passagem que deve ter feito até mesmo o mais ferrenho membro do grupo Prerrogativas se perguntar onde foi parar o “notável saber jurídico” exigido pela Constituição dos ministros do STF, Toffoli chegou ao ponto de declarar que violência doméstica e violência policial eram manifestações de “expressão” do marido atacador e do policial que joga um varão de uma ponte, para poder esgrimir pela premência das restrições desejadas por ele.
Antes o problema do voto de Toffoli fosse exclusivamente sua indigência intelectual e jurídica. Muito mais graves serão seus efeitos, caso ele saia vencedor deste julgamento. Já o afirmamos, mas será necessário repetir ainda muitas vezes: a imposição do “dever de cuidado” e do “notice and takedown” nestes moldes será o termo da liberdade de sentença nas mídias sociais, que, para evitar qualquer problema judicial, se encarregarão de extinguir absolutamente tudo o que tiver a mínima possibilidade de ser entendido uma vez que ilícito. Críticas a políticos, a governos e a instituições; a espalhamento de fatos inequivocamente verdadeiros, mas que desagradem o poderoso de vez; a sátira a comportamentos; tudo isso e muito mais corre o risco de desvanecer das mídias sociais, acabando com o debate público e transformando-o em mero concurso de quem concorda mais com aqueles que fazem as regras.
Ainda que Toffoli tenha sido o único a votar até agora, já se sabe que sua opinião é compartilhada por outros colegas que almejam se juntar a ele no papel de censores de um Brasil inteiro – e censores ocultos, ainda por cima, já que o “trabalho sujo” de executar o cerceamento será feito pelos próprios provedores, feitos “terceirizados” de um vontade que não foi criado por eles. Uma anormalidade uma vez que esta não pode prosperar, mas haverá, no STF, qualquer ministro tão comprometido com a liberdade de sentença e tão grandiloquente a ponto de demover seus pares de hábitos antidemocráticos cada vez mais arraigados?