As esdrúxulas decisões tomadas nos últimos anos pela Suprema Corte brasileira já estão chamando a atenção do mundo. Censura prévia, prisões arbitrárias e julgamentos ilegais fizeram com que, mais uma vez, a grande mídia americana se ocupasse dos desmandos do STF.
Nesta semana foi o The New York Times que trouxe na manchete a pergunta (retórica): “O Supremo está salvando ou ameaçando a democracia?”
Numa tentativa de salvar não a democracia, mas as aparências, o presidente do tribunal fez aquilo que é, sem sombra de dúvida, sua suprema vocação: concedeu ao jornal americano (mais) uma entrevista (“juiz só fala nos autos” é um conceito superado para os neoconstitucionalistas…).
O ilustre magistrado, não podendo evidentemente afirmar que as medidas, digamos, heterodoxas, adotadas pelo STF são justificadas pela Constituição (que não prevê nenhuma delas, e proíbe várias), resolveu apelar para a teoria da conspiração: as medidas inconstitucionais se justificam porque “existe um movimento global, radical e de extrema-direita, de ataque às instituições”.
Apenas alguns dias antes, o mesmo magistrado havia declarado, em outra entrevista (ele é incansável!) que seu legado como presidente do STF será “a total recivilização do Brasil”. De delírios de grandeza para teorias da conspiração, ao que parece, a distância é pequena.
Porém o que mais chama a atenção na entrevista ao NYT são os prodigiosos malabarismos jurídicos que, se não enganam nem mesmo um estudante de primeiro ano de Direito, conseguem às vezes iludir alguns leigos — especialmente aqueles que querem ser iludidos.
Um exemplo: perguntado se a censura exercida despudoramente pelo STF nas redes sociais não seria uma ameaça à democracia, o ministro disse que a ideia de liberdade de expressão nos Estados Unidos é diferente do resto do mundo. “O mundo não aceita discurso de ódio e incitação à violência com a tolerância que (…) a Primeira Emenda (à Constituição americana) preserva.”
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Observem a falácia: milhões de brasileiros sabem que as ordens dadas pelo STF às redes sociais não são de retirada de conteúdo específico (retirar o post tal, feito por fulano, no dia tal, a pedido de alguém que se sentiu ofendido), e sim de suspensão de perfis, ou seja: centenas de pessoas (eu fui uma delas) foram proibidas pelo STF de fazer QUALQUER postagem em redes sociais. O tribunal está dizendo para esses brasileiros: “Nós, ministros supremos, não sabemos o que vocês pretendem dizer” (até porque Suas Excelências não têm — ainda — o dom da profecia) “mas seja lá o que for, vocês estão desde já sob censura prévia”.
Censura prévia, como sabe qualquer acadêmico de Direito, é inconstitucional. Na grande maioria dos casos, tornaram-se alvo dessa censura pessoas que haviam postado críticas ao sistema de votação adotado no Brasil e à atuação de integrantes da Justiça Eleitoral, especialmente do senhor Alexandre de Moraes. Em qualquer democracia ocidental, a possibilidade de criticar agentes públicos é indissociável do direito à liberdade de expressão. Há até quem inclua nesse direito o ato de chamar um presidente da República de “genocida”. Mas na visão de Barroso e de seus colegas, críticas a Moraes e à urna eletrônica viraram “discurso de ódio” e “ataque à democracia”, e passaram a justificar, na melhor das hipóteses, censura prévia para quem as faz (na pior das hipóteses, confisco de passaporte, bloqueio de contas bancárias e até mandado de prisão).
Sabemos que foi exatamente a recusa da rede social X (antigo Twitter) em obedecer às ordens inconstitucionais de censura que levou à sua suspensão. Alexandre de Moraes já havia ameaçado prender por esse “crime de desobediência” a representante legal da empresa no Brasil, mas ela pediu demissão, e a empresa não nomeou outra pessoa. Não tendo Moraes como prender o próprio Elon Musk (se pudesse já o teria feito), restou-lhe suspender o X, calando mais de 20 milhões de brasileiros no maior ato de censura da história do país. A censura está portanto no início e no fim da triste história da suspensão do X no Brasil.
Pois bem: como é que o ilustre presidente do STF resume esse episódio para o NYT? “A história do X é muito simples e não tem nada a ver com liberdade de expressão.” Malabarismo jurídico notável!
Mas a verdade sempre acaba aparecendo, ainda que por vias transversas: quando perguntado pelo repórter se o STF estava violando (“sacrificando”) as normas da democracia, o ministro, ao invés de negar a violação da lei, alegou que “é preciso levar em conta o ambiente em que atuamos e as forças que tivemos que enfrentar”. aqui temos praticamente uma confissão: violamos sim a Constituição, porque afinal de contas a situação era “excepcional”, o “inimigo” era poderoso.
Descumprir a lei “em caráter excepcional” é o que alguns políticos chamam de “jogar fora das quatro linhas”. Já alguns cientistas políticos chamam isso por outro nome: golpe. Algo assim como se os poderosos de plantão dissessem para o Estado de Direito: “Perdeu, mané!”
Marcelo Rocha Monteiro é procurador de Justiça e professor da UERJ