O Ministério Público de São Paulo apresentou ao Supremo Tribunal Federalista (STF) um recurso contra a decisão de junho que descriminalizou o porte de maconha para consumo pessoal. No recurso, chamado de embargos de enunciação, o órgão diz que a redação da secção dispositiva do acórdão (trecho do documento que oficializa a decisão) possibilita interpretações, dentro de processos judiciais, no sentido de livrar de punição penal usuários de outras drogas ilícitas, uma vez que cocaína, ecstasy, heroína, entre outras.
O recurso não procura criminalizar novamente o porte de maconha para uso pessoal, mas somente expelir contradições, omissões e obscuridades na decisão, que fixou limite de até 40 gramas ou seis vegetação de cannabis sativa para considerar uma pessoa usuária, caso não haja vestígio de que pretendia vender a droga.
Cabe ao relator da ação, Gilmar Mendes, indagar o recurso e pedir para que seja julgado no plenário do STF, com os demais ministros.
“O dispositivo do venerando acórdão, logo de início, afirma a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006, afastando qualquer efeito de natureza penal, sem qualquer menção quanto à espécie de droga”, diz o MP-SP, reproduzindo, em seguida, a redação inicial da secção dispositiva, segundo a qual a Incisão decidiu “declarar a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 28 da Lei 11.343/2006, de modo a afastar do referido dispositivo todo e qualquer efeito de natureza penal, ficando mantidas, no que couber, até o advento de legislação específica, as medidas ali previstas”.
O trecho seguinte do dispositivo do acórdão deixa evidente que a decisão vale exclusivamente para a maconha. “Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa”, diz a decisão, na secção dedicada à tese de repercussão universal (a regra que passa a valer para todos os casos).
Mesmo assim, para o MP-SP, haveria uma incongruência, em razão de não ser mencionado na secção inicial que a descriminalização limita-se exclusivamente à maconha. “Depreende-se da leitura do inteiro teor do acórdão que não foi intenção da Corte descriminalizar a conduta de posse para consumo pessoal de outras drogas”, diz o órgão.
“No entanto, no primeiro trecho acima citado (alínea ‘i’), o dispositivo do acórdão não reproduz esse entendimento, tendo em vista a redação que lhe foi dada, que abre espaço para interpretação de que não mais persiste a natureza penal da incidência do mesmo artigo 28 da Lei de Drogas também para as demais substâncias ilícitas, e não apenas para a Cannabis sativa”, afirma, depois no recurso.
O MP-SP pediu para o STF retificar o documento, explicitando, na secção inicial e em outras seguintes, que a descriminalização só vale para a maconha.
“Mantém-se, desse modo, o sentido daquilo que foi deliberado por essa Corte, afastando-se, ao mesmo tempo, interpretações, que já começam a surgir, no sentido de que o Supremo Tribunal Federal considerou penalmente atípica a conduta do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006, qualquer que seja a droga ilícita”, alertou o órgão.
Em outra secção do recurso, o MP-SP ainda apontou preterição na redação quando se refere à “substância cannabis sativa”. Esclareceu que a Cannabis sativa é uma vegetal, sendo que a substância estupefaciente e motivo da proibição é o tetrahidrocannabinol (THC). O órgão afirma que há variedades de fumo – uma vez que o haxixe e o skunk – com concentrações maiores de THC que a grama seca. Por isso, pediu ao STF que esclareça se os 40 gramas vale também para a maconha geral e esses outros produtos mais potentes, ou se é o caso de estabelecer limites diferentes – eventualmente mais baixos – para o porte deles para consumo pessoal.
Por término, o MP-SP recorreu contra a exclusão do órgão nos mutirões que serão realizados pelo Parecer Vernáculo de Justiça (CNJ) para rever as condenações de pessoas que foram condenadas sem indícios de tráfico, de modo que possam se livrar das penas.
“Não há justificativa para que a instituição, titular da ação penal pública e fiscal da ordem jurídica, não seja chamado a participar de tal ‘apuração’ e ‘correção’ das prisões”, contestou o órgão recurso, assinado pelo procurador-geral de Justiça de São Paulo, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa.
Defensoria recorreu para retirar usuário de maconha da presença de um juiz
A Defensoria Pública de São Paulo também apresentou embargos de enunciação, mas para esclarecer outros pontos do acórdão. O primeiro deles se refere à situação em que uma pessoa é flagrada com mais de 40 gramas de maconha. Nesses casos, o STF definiu que ela também possa ser considerada usuária, desde que o juiz aponte nos autos prova suficiente dessa requisito. Para a Defensoria, deveria ocorrer o inverso: o juiz deve considerar que não há prova suficiente de que a pessoa tinha por objetivo vender a droga.
“O texto promove indevida inversão do ônus da prova ao exigir que o magistrado aponte prova da condição de usuário para decidir pela atipicidade da conduta, quando deveria, com a devida vênia, tendo em vista o princípio da presunção da inocência e o próprio sistema acusatório, exigir-lhe em sua fundamentação, ao invés, não a prova da condição de usuário pela defesa, mas sim a ausência de provas da traficância para concluir pela atipicidade da conduta”, diz.
Essa mudança na redação abre a possibilidade de que, se uma pessoa for flagrada com quantidades muito maiores de maconha – e aqui a Defensoria não estabelece um limite, o que poderia, em hipótese, abraçar 400 gramas, 4 quilos… – se não houver outra prova de tráfico, ela seria liberada. Entre as provas admitidas pelo STF estão:
- forma de acondicionamento da droga;
- circunstâncias da inquietação;
- variedade de substâncias apreendidas;
- inquietação simultânea de instrumentos uma vez que: balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes.
Em outra secção do recurso, a Defensoria Pública pede o explicação sobre a quem competirá sancionar o usuário com aviso e comparência a programa educativo. Essas medidas não terão mais o caráter penal – ou seja, o usuário não mais responderá a um processo penal e réprobo, o que mancharia sua ficha corrida.
O STF determinou que a emprego dessas sanções fique a incumbência de um juiz criminal, até que o CNJ regulamente melhor o procedimento. A mesma decisão, porém, determinou que o Executivo crie “órgãos técnicos”, compostos por especialistas em saúde pública, para utilizar aos usuários e dependentes a aviso e o comparência a programa educativo.
Para a Defensoria, seria um procedimento semelhante ao de Portugal, de caráter administrativo, que dispensa o comparência do usuário perante um juiz. “Modelos como o de Portugal direcionam a pessoa para políticas públicas com equipe técnica especializada no acolhimento, mas também com competência administrativa para indicar as medidas legais (advertência, medidas educativas, dentre outras) mais adequadas em cada caso”, diz o órgão.