As recentes propostas do Banco Medial para modificar a Solução nº 277/2022 podem trazer mais implicações para o mercado de moedas estáveis — criptomoedas atreladas ao dólar, uma vez que USDT e USDC — no Brasil.
Entre os principais impactos está a possibilidade de criminalização de operações realizadas em ambientes descentralizadosuma vez que protocolos DeFi (finanças descentralizadas), mercados OTC (over-the-counter) e transações P2P (pessoa para pessoa).
No Brasil, por meio da mudança da Solução nº 277, o Banco Medial do Brasil pretende considerar operações com stablecoins uma vez que operações de câmbioo que significa, em regra, criminalizar operações descentralizadas envolvendo stablecoinscontrariando um dos princípios fundamentais de funcionamento do mercado de criptoativos.
Com efeito, ao prevalecer o entendimento do Banco Medial, atualmente sujeito à consulta pública, da mesma forma do que ocorre em relação às operações de câmbio, por força do item 3º da Lei 14.286/2021, operações envolvendo stablecoins só poderão ser realizadas por meio de instituições autorizadas a operar no mercado de câmbio.
Ou seja, a realização de operações realizadas em ambientes descentralizados, uma vez que protocolos DeFi (finanças descentralizadas), mercados OTC (over-the-counter) e transações P2P (peer-to-peer) passam a estar criminalizadas, conforme será visto em profundidade no tópico inferior.
🚨🚨Transações com stablecoins via P2P e DeFi podem ser criminalizadas no Brasil.
O Banco Medial propôs mudanças na Solução 277 que podem afetar o mercado de stablecoins.
Operações realizadas por DeFi ou P2P podem ser consideradas ilegais, gerando penas de até 6 anos de… pic.twitter.com/ymP0zbJ7K5
— Livecoins (@livecoinsBR) 4 de dezembro de 2024
Criminalização por meio de normas penais em Branco Heterogêneas
O recta penal brasiliano prevê a criminalização de operações de câmbio não autorizadas, conforme o item 22 da Lei nº 7.492/1986que estabelece:
“Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País: Pena – reclusão de 2 a 6 anos e multa.”
Por sua vez, o noção de “operação de câmbio não autorizada” depende de regulamentações complementares, uma vez que as editadas pelo Banco Medial. Essas regulamentações são chamadas de normas penais em branco heterogêneasuma vez que explica Claus Roxin:
“Normas penais em branco heterogêneas são aquelas cujos elementos definidores do tipo penal não provêm do próprio direito penal, mas de normas de outras áreas, como regulamentos administrativos ou técnicos.”(ROXIN, Claus. Recta Penal – Segmento Universal, 5ª ed.)”
Dessa forma, alterações propostas pelo Banco Medial podem ampliar o escopo do item 22, passando a incluir operações com stablecoins realizadas fora do envolvente de instituições autorizadas, uma vez que operações de câmbio não autorizadas, sujeitando os infratores à pena de reclusão de 2 a 6 anos e multa.
O Impacto da proposta do Banco Medial
A minuta submetida à consulta pública pelo Banco Medial introduz o seguinte dispositivo na Solução nº 277:
“Art. 76-A. Está incluída, no mercado de câmbio, a prestação de serviços de ativos virtuais que compreenda as seguintes atividades ou operações:(…) III – compra, venda, troca, transferência ou custódia de ativos virtuais denominados em moeda estrangeira.”
Ao associar stablecoins ao mercado de câmbio, essa proposta sujeita operações com esses ativos às exigências do item 3º da Lei nº 14.286/2021que restringe operações cambiais a instituições autorizadas:
“As operações no mercado de câmbio podem ser realizadas somente por meio de instituições autorizadas a operar nesse mercado pelo Banco Central do Brasil.”
Assim, transferências de stablecoins realizadas em protocolos DeFi ou por meio de transações P2P – que não envolvem instituições autorizadas a operar no mercado de câmbio – poderiam ser interpretadas uma vez que operações de câmbio não autorizadas, sujeitas às penalidades do item 22 da Lei nº 7.492/1986.
Porquê solucionar a questão?
Há duas abordagens possíveis para evitar a criminalização excessiva do mercado:
- Exclusão das operações com stablecoins do noção de operação de câmbio: Reconhecer que operações envolvendo stablecoins não são operações de câmbio, oferecido que uma stablecoin, embora busque estabilizar seu valor, fazendo referência a outros ativos, não pode ser confundida com os ativos aos quais fazem referência. Vale ressaltar, inclusive, que stablecoins uma vez que a DAI, não utilizam nenhum ativo real uma vez que lastro de modo a estabilizar seu valor.
- Adoção de uma regulamentação intermediária: Nesse sentido, o anteprojeto de lei complementar apresentado pelo Deputado Lafayette de Andrada propõe que operações realizadas em mercados de balcão não sejam consideradas operações de câmbio, mesmo quando envolverem contrapartes internacionais:
“As operações realizadas em mercado de balcão não são consideradas operações de câmbio, mesmo que envolvam a troca de criptoativos entre contrapartes internacionais.”
A criminalização de operações com stablecoins realizadas fora do sistema tradicional de câmbio, principalmente via protocolos descentralizados ou transações P2P, pode inibir a inovação e prejudicar a competitividade do Brasil no mercado global de criptoativos.
Para proceder de forma responsável, é imprescindível uma regulamentação que promova a segurança jurídica sem sufocar o potencial transformador dessas tecnologias.
Fernando Lopes é jurisconsulto, foi um dos fundadores do Instituto Brasílio de Recta Penal Econômico. Foi professor de Recta e Processo Penal na Universidade Tuiuti do Paraná, professor de tecnologia blockchain na EA Banking School, sendo responsável e coautor de livros sobre o mercado de criptoativos, um deles indicado na bibliografia de criptomoedas do Superior Tribunal de Justiça. É também cofundador do escritório LOPES E ZORZO, primeiro do Brasil especializado em tokenização e DEFI.
Marcela Zorzo é advogada, perito em tokenização de ativos, coautora do livro “ O Guia Jurídico da Tokenização”. Cofundadora do escritório Lopes e Zorzo, onde atua na estruturação jurídica de operações societárias internacionais complexas, envolvendo jurisdições favorecidas, além de grandes operações no agronegócio.