O socol, marchetado artesanal e símbolo cultural de Venda Novidade do Imigrante (ES), enfrenta um dos maiores desafios de sua história: as mudanças climáticas. As altas temperaturas e a baixa umidade registradas nos últimos anos estão comprometendo o processo natural de maturação do resultado de Indicação Geográfica, impactando a qualidade e a tradição.
Segundo Ednes José Lorenção, produtor do Sítio Lorenção, o inverno de 2024 foi principalmente crítico. O município, que historicamente apresentava umidade média superior a 60%, registrou índices de somente 38% a 40%, alterando drasticamente o processo de levedação.
“Sem a vinda dos fungos, o socol fica pronto antes da hora. Isso compromete o sabor e a textura, tornando o embutido mais duro e seco”, explica.
A maturação lenta, que tradicionalmente durava entre quatro e seis meses, é principal para desenvolver as características únicas do socol. Durante esse período, os fungos externos criam uma estrato protetora que preserva a umidade e regula o pH interno, permitindo que as bactérias lácticas fermentem o marchetado. O processo é responsável por produzir compostos que dão ao socol seu sabor adocicado, estabilidade entre sal e pimenta e textura macia.
Com a aceleração da secagem, o sabor muda consideravelmente. “Sem a fermentação lenta, o sal e a pimenta ficam mais evidentes, enquanto o sabor típico de embutido bem fermentado vai se perdendo”, alerta a engenheira de Provisões e também produtora de socol Graccieli Lorenção.
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Maturação acelerada
Outro fator que contribuiu para a aceleração da maturação é a substituição da película que envolve o socol. Até 2022, os produtores utilizavam o peritônio, membrana originário retirada da ventre do porco. Embora eficiente em manter a umidade por mais tempo, a pele trazia riscos de contaminação, já que carrega bactérias do bicho.
A adoção do colágeno originário trouxe segurança microbiológica, mas impactou diretamente o processo artesanal, conta Graccieli. Mais porosa, a envoltório de colágeno acelera a secagem, reduzindo o tempo de formação da aspecto particularidade do socol de 2-3 semanas para menos de uma semana. “Sem a retenção de umidade que o peritônio proporcionava, o embutido seca muito mais rápido, e isso interfere diretamente na qualidade final”, explica.
Com o clima sedento dificultando o estabilidade originário, os produtores têm buscado alternativas. “Se continuar assim, talvez a instalação de umidificadores seja inevitável, como já acontece em granjas de porcos”, sugere Ednes.
A instalação de câmaras frias com controle de umidade também é cogitada, mas os custos são proibitivos para a maioria dos produtores artesanais. “O investimento é alto, e isso pode inviabilizar o trabalho para quem faz o socol de forma tradicional”, lamenta o produtor.
Regulação
O Selo Arte, que permite a comercialização de produtos artesanais em todo o país, tem sido uma salvaguarda para os produtores, permitindo que mantenham práticas tradicionais sem transfixar mão de padrões sanitários rigorosos. No entanto, os desafios técnicos e estruturais permanecem.
No Brasil, conforme a engenheira de vitualhas, a legislação exige que o socol seja produzido em ambientes revestidos de metal e azulejo, que não retêm umidade, ao contrário das estruturas de madeira permitidas na Itália, país de origem da tradição. Essa diferença agrava ainda mais os problemas causados pelo clima sedento nas Montanhas Capixabas.
As alterações no processo de maturação já estão gerando impactos perceptíveis. Em alguns lotes, os socóis têm sido retirados com somente 45 dias para evitar que endureçam ou sequem demais. Isso, no entanto, gera um resultado com características sensoriais diferentes, alguma coisa que tem preocupado os produtores e desagradado consumidores mais atentos. “Já tivemos turistas reclamando da consistência e do sabor”, relata Graccieli Lorenção.
Além do socol, outro marchetado produzido no Sítio Lorenção, o culatello, feito com pernil suíno, também têm sofrido os mesmos impactos do clima sedento, demonstrando a amplitude do problema.
Porvir
Graccieli também levanta uma preocupação sobre o porvir dos fungos e bactérias essenciais à produção.
“Os esporos que temos aqui talvez não sejam os mesmos que existem em outras localidades de Venda Nova. Com as mudanças climáticas, será que uma bactéria competidora pode acabar eliminando esses microrganismos que fermentam o socol? Isso é algo que ainda não sabemos”, reflete.
Diante dos desafios impostos pelas mudanças climáticas, os produtores de socol têm buscado maneiras de ajustar os processos sem comprometer a núcleo do resultado. No entanto, a situação exige atenção, inovação e pedestal técnico.
“A gente fica preocupado, mas temos que achar uma solução. Talvez mudar algo no ambiente ou no processo, mas sem perder a identidade do socol”, conclui Ednes.
O porvir do socol, assim uma vez que de muitas outras tradições artesanais, depende não somente da capacidade de adaptação dos produtores, mas também de um olhar circunspecto para os impactos das mudanças climáticas na preservação de saberes e sabores únicos.