Periodicamente tenho realizado palestra sobre a gênese das armas nucleares, abrangendo as descobertas e experimentos do início da segunda década do século XX aos lançamentos das duas bombas atômicas sobre o Japão, pelos Estados Unidos da América (EUA), nas cidades de Hiroshima e Nagasaki. As palestras são proferidas em instituições de ensino e o conteúdo contempla o Projeto Manhattan, o design destas duas armas nucleares e seu funcionamento.
Após a palestra é reservado um intervalo de tempo para perguntas dos ouvintes, como é usual em qualquer apresentação do tipo. O conteúdo das perguntas está majoritariamente associado à compreensão da Física destes dispositivos. Há também a participação do ouvinte que enriquece a apresentação, quando do comentário sobre um fato histórico, o qual não foi contemplado na palestra. Outros tipos de manifestação estão associados à perplexidade do público, quando da comparação entre a energia de uma arma nuclear com outras manifestações de energia e ao tomar conhecimento da sequência de descobertas que trilharam o caminho para a criação deste artefato icônico e sombrio.
Ao final das perguntas, quase a maioria dos ouvintes se dirige a uma mesa que deixo no palco com os protótipos metálicos em escala real dos combustíveis das duas bombas atômicas, a Little Boy (Hiroshima) e a Fat Man (Nagasaki). Numa destas palestras, já na fase de observação dos protótipos dos combustíveis das bombas, um jovem, ao que me pareceu, em idade de estudante de ensino médio, se distinguiu dos demais observadores. Enquanto ele olhava meditativo para os protótipos, ao passar perto de mim, fez uma pergunta retórica, aquela que embora termine em uma interrogação, não espera por resposta; apenas lança uma reflexão: “Para que serve a bomba atômica?” A entonação da pergunta foi tão clara, que verdadeiramente, não havia o que responder; eu olhei para ele, franzi a testa, pressionei os lábios e, em contraste com a eloquência durante a palestra, disse apenas: “Então, né?!”. E ficou por isso.
Esse episódio tem alguns anos. Confesso que o desafio da reflexão sobre qual a utilidade de uma arma nuclear, não ocupou meus pensamentos. É muito comum para pessoas que têm conhecimento sobre o tema, seja por curiosidade ou devido ao estudo sobre estes artefatos militares, dar uma resposta que há muito se tornou um clichê apocalíptico: diante da certeza da destruição mútua dos adversários, evitar uma terceira guerra mundial ou uma guerra limitada entre duas potências nucleares.
Se não bastasse o temor que ronda a todos nós, da possibilidade de vivenciarmos uma guerra nuclear em nível mundial, há um fator pouco levado em consideração tanto pela sociedade quanto pela mídia convencional: o enorme gasto monetário com as inovações tecnológicas aplicadas à produção de novas armas nucleares
Eu realmente acredito que o fato de dois ou mais países estarem na condição de equilíbrio militar nuclear, desestimule qualquer iniciativa de confronto das partes. Mas é claro que o status de potência nuclear deve contemplar não somente a posse de armas atômicas, mas a tecnologia necessária e suficiente de ataque imediato e sistemas de defesa eficazes e robustos.
Talvez ele não tenha compreendido ou retido uma parte da palestra, a qual contextualiza a razão do surgimento do Projeto Manhattan. A concepção de um projeto científico e tecnológico em viabilizar a construção de uma arma que utilizasse a recém-descoberta fissão nuclear do átomo de Urânio, partiu de cientistas de várias nacionalidades, alguns inicialmente residentes na Inglaterra e posteriormente unidos aos cientistas norte-americanos.
A justificativa tinha um caráter de urgência e de sobrevivência: acreditava-se que a Alemanha de Adolf Hitler iria investir recursos humanos e tecnológicos num armamento desta natureza; afinal de contas, a fissão nuclear do Urânio havia sido descoberta no Instituto Kaiser Guilherme, em Berlim, em 1939
Ainda é reconfortante saber que os Estados Unidos tenham investido uma fábula de dólares em instalações industriais, pessoal e tecnologia para se antecipar à Alemanha, então nazista, caso ela tivesse sucesso na obtenção de uma arma tão poderosa, em meio a um conflito bélico de proporções mundiais. O resultado concreto do Projeto Manhattan foi a construção das duas bombas atômicas, as quais contribuíram para o fim da 2ª Guerra Mundial no Pacífico, entre os Estados Unidos e o Japão. Na Europa já se celebrava a rendição da Alemanha meses antes dos ataques nucleares ao Japão. Mas a pergunta do jovem estudante não tem nada a ver com isso; não tem nada a ver com estratégia ou dissuasão.
Decorridos 79 anos das explosões nucleares sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, aquela pergunta, de fato nos leva à reflexão: pra que serve? Excluindo as armas nucleares, todos os explosivos criados pelo ser humano estão em plena atividade, alguns mais vezes utilizados, outros menos, mas é fato que a disposição em os utilizar num conflito bélico, passa por cima de preceitos éticos, morais e acordos internacionais, por não serem considerados artefatos bélicos de destruição em massa.
Podemos criar mentalmente uma coleção deles, enfileirados e tendo em uma extremidade a pólvora, passando pelas bananas de dinamite, pelas granadas, pelos mísseis convencionais até armamentos mais potentes, como por exemplo, as bombas norte americana GBU-43/B, a “mãe de todas as bombas”, MOAB (Massive Ordnance Air Blast) e a russa ATBIP (Aviation Thermobaric Bomb of Increased Power), o “pai de todas as bombas”, FOAB
Estas armas são denominadas de bombas de obliteração, em oposição às bombas de precisão: a destruição causada por tais armamentos abrange uma área muito grande. Embora sejam armas poderosas, o rendimento explosivo delas é equivalente a 0,08% (MOAB) e 0,32% (FOAB) da bomba atômica Little Boy. A MOAB foi desenvolvida em 2003 e efetivamente utilizada pelos EUA no Afeganistão contra o grupo terrorista Estado Islâmico, em 2017.
Agora, a minha pergunta, não retórica: pra que servem todas estas bombas? Sem dourar a pílula, elas têm apenas uma finalidade: matar seres humanos e/ou destruir estruturas feitas pelo homem. É possível excluir dois compostos explosivos da coleção, como tendo apenas uma única serventia: a dinamite e o C-4. A dinamite também mata e destrói estruturas, mas fazendo jus a esta invenção, ela foi criada com a finalidade de se produzir explosivos compostos por nitroglicerina, que fossem confiáveis no manuseio e serem aplicados em construção de túneis através de montanhas, detonação de rochas, construção de estradas, pontes e ferrovias, para que o transporte de pessoas e cargas pudesse ser realizado a grandes distâncias, com maior rapidez e segurança. O inventor da dinamite foi o químico sueco Alfred Nobel, em 1867. Nobel deixou toda sua fortuna para o prêmio que leva seu nome, cuja finalidade está em premiar cientistas que prestam benefícios à humanidade. Apesar dessa utilidade ferramental, a letalidade do poder explosivo da dinamite foi amplamente explorada como arma de guerra
O explosivo C-4, o qual utiliza o RDX como agente explosivo, também pode ser considerado um aliado do homem, em algumas circunstâncias. O RDX, que possui 33% mais poder explosivo que o TNT (Trinitrotolueno) por grama, foi um dos altos explosivos utilizados em armas nucleares de implosão, tal como na Gadget, do teste Trinity (a 1ª bomba atômica) e na Fat Man, ambas no Projeto Manhattan. Além desse uso, ele é largamente empregado em demolições controladas em edificações civis, tais como pontes, prédios residenciais e uma variedade de edificações. Não tenho certeza absoluta, mas acredito que o “lado bom” dos explosivos esteja associado somente a estes dois.
A serventia de uma arma nuclear, além de somente causar massiva destruição e morte, talvez também sirva para evitar uma 3ª guerra mundial, convencional ou nuclear. O arsenal de bombas atômicas dos países detentores destes armamentos funciona mais ou menos como um seguro de vida ou de bens materiais: é bom tê-lo, mas é melhor não o usar.
Em um artigo que escrevi no ano passado neste jornal (Existe justificativa para o uso de uma arma nuclear num conflito bélico?), comento sobre o ditador russo Vladimir Putin quando ele aventou a hipótese em utilizar uma arma nuclear tática na guerra contra a Ucrânia; mas não o fez. Até o momento, não passou de um blefe, que talvez expressasse seu desejo, mas que foi contido, dado o forte estigma associado ao uso bélico deste tipo de armamento e a insegurança quanto à reação da comunidade internacional, não somente em sanções diplomáticas, mas em ação concreta dos EUA e da OTAN. Para registro, uma arma nuclear tática de muito baixo poder explosivo, pode ser equivalente a 30 toneladas de TNT. Isto corresponde a aproximadamente 0,23 % da energia liberada na bomba atômica de Hiroshima, mais a liberação de subprodutos do combustível nuclear, todos radiativos e de longa meia-vida.
Se não bastasse o temor que ronda a todos nós, da possibilidade de vivenciarmos uma guerra nuclear em nível mundial, há um fator pouco levado em consideração tanto pela sociedade quanto pela mídia convencional: o enorme gasto monetário com as inovações tecnológicas aplicadas à produção de novas armas nucleares e com a manutenção destes artefatos.
Segundo o ICAN (International Campaign for the Abolition of Nuclear Weapons), uma Campanha Mundial formada por várias organizações não governamentais e vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 2017, os custos com armamento nuclear em 2023 pelos nove países detentores desses artefatos, somou 91,4 bilhões de dólares, pagos a companhias que trabalham para os governos de alguns países há décadas, de dezenas de bilhões de dólares e em torno de três centenas de bilhões de dólares em projetos e serviços futuros. Somente em lobby, algumas empresas investiram perto de 120 milhões de dólares nos governos de EUA e França. A indústria bélica nuclear não sobrevive, ela vive da corrida armamentista nuclear.
Para que tanta arma nuclear? Uma soma aproximada sobre os nove países nuclearmente armados dá conta de 12.500 ogivas atômicas (mais de 11.000 com EUA e Rússia) e o número tende a crescer principalmente devido à Coreia do Norte, à China e à República Islâmica do Irã que, ao que tudo indica, será o décimo país do clube atômico.
Durante a Guerra Fria, quando somente EUA e a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) possuíam um número significativo de armas nucleares (Inglaterra, França e China já detinham este tipo de armamento, mas em número muito menor), a doutrina de dissuasão funcionou bem e em algumas circunstâncias diplomaticamente tensas, evitou um conflito aberto entre as duas grandes potências. Mas hoje, com tantos Estados nucleares, e alguns deles beirando à delinquência, dá-nos a impressão que o temor do contra-ataque ficou no passado; embora eu prefira acreditar que não ficou.
Voltando à pergunta do jovem estudante, de fato ela não requeria uma resposta, e isso não se deve apenas a entonação retórica, mas porque ela era um lamento; o jovem ficou triste. Sendo assim, eu não fiquei devendo uma resposta: eu também lamentei.
Dinis Gomes Ferry é professor no Departamento de Licenciatura em Física da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS)– Realeza e autor do livro “A Bomba Atômica Revelada”.