A contagem estava empatada para reconhecimento da negativa de autoria. Eram três votos pela liberdade e três para a condenação. Quando o juiz retirou o sétimo voto da urna, naqueles poucos segundos entre o desdobramento da cédula e sua leitura ao plenário, o coração daquele jovem advogado trepidou tão violentamente que não pôde respirar até o decisivo “NÃO” ecoar pela sala como o badalo de um sino, o sino da liberdade! A emoção do réu, ao alforriar-se das garras de ferro do estado e de uma acusação injusta, fez o advogado entender que o júbilo experimentado naquele seu primeiro Tribunal do Júri, não tinha raiz na simples vitória, mas provinha do sentimento de “liberdade”.
Todo advogado deveria aprender a ser, desde cedo e acima de tudo, um amante da liberdade. Essa palavra que faz bater forte os corações e agitar a alma do indivíduo. Não há motivação mais poderosa para o advogado. Perseguir a liberdade é perseguir a justiça. Lutar contra o arbítrio do Estado é defender a dignidade humana e os direitos individuais, que resultam na essência do nosso regime democrático.
Infelizmente, nos dias correntes os advogados têm se motivado, cada vez menos, por ideias de justiça e liberdade, e atuado segundo interesses imediatos e financeiros. Um movimento natural, que reflete o momento da nossa sociedade como um todo. Todavia, tal evidência também implica em uma desconstrução dos institutos que foram pensados para a defesa da liberdade e do estado de direito, como é a Ordem dos Advogados do Brasil.
Uma instituição composta e liderada por advogados que atuam primordialmente segundo seus interesses pessoais, jamais conseguirá manter-se nos trilhos dos interesses coletivos e da defesa do Estado de Direito, sobretudo em um tempo em que o estado cresce em tamanho e poder, mas decresce em eficiência e respeito às liberdades individuais.
É necessário, portanto, que cada advogado sinta novamente a emoção de defender a liberdade, de fazer soar o “sino da liberdade” em um sistema que cada vez mais a ameaça
Esta realidade se torna ainda mais preocupante quando observamos o cenário político-institucional brasileiro atual. Já é de evidente percepção que o Estado brasileiro, ao longo das últimas décadas, tem se expandido de forma vertiginosa, avançando sobre o indivíduo. A insuportável carga tributária, imposta para bancar os gastos públicos e dívidas incontroláveis, a sanha pelo controle da liberdade de expressão e a relativização do direito de propriedade privada, ilustram bem como o cidadão comum, aquele que deveria ser o destinatário final das políticas públicas e o beneficiário da estrutura estatal, vê-se cada vez mais sufocado por uma máquina que deveria servi-lo, mas que, paradoxalmente, o submete.
Neste cenário de hipertrofia estatal, o Poder Judiciário emerge em uma metamorfose preocupante. Da função constitucional de julgar conflitos e interpretar a lei, passou a atuar como formulador de políticas públicas e como árbitro final de questões que deveriam ser decididas na esfera política ou pela própria sociedade civil.
Este ativismo judicial fez com que o Judiciário, nos momentos de crise recente, invocasse para si o papel de grande justiceiro da república, desempenhando este papel pisoteando sobre as garantias constitucionais daqueles que considera “inimigos da democracia”. De reboque, levou para o ralo uma série de prerrogativas da advocacia, dificultando o direito de defesa. Veja-se, por exemplo, o caso da proibição de advogados utilizarem celulares nas sessões de julgamento, o que é garantia legal, ou as decisões que limitam o acesso a autos de processos, ferindo frontalmente o direito à ampla defesa garantido pela Constituição.
Na verdade, tudo isso representa um movimento no sentido de tornar o estado cada vez mais poderoso e os indivíduos cada vez mais encurralados e controlados. A relativização de garantias processuais básicas, como o contraditório e a presunção de inocência, em nome de uma suposta eficiência no combate a determinados crimes, exemplifica claramente esta tendência.
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O recente episódio envolvendo o ministro Flávio Dino e a Ordem dos Advogados do Brasil é emblemático deste contexto. Ao questionar em plenário a função pública exercida pela OAB, afirmando que a entidade tem atuado de forma contraditória perante o STF, o ministro parece adotar uma estratégia que visa deslegitimar uma das poucas instituições com independência suficiente para confrontar eventuais abusos do Poder Judiciário.
O argumento utilizado pelo ministro é particularmente revelador. Ele afirmou que a OAB buscou priorizar sua natureza privada ao escapar da fiscalização do Tribunal de Contas da União e da obrigação de realizar concursos públicos para contratação de funcionários. Com base nisso, tentou deslegitimar o caráter público da atuação da Ordem, sugerindo que a instituição deveria ser tratada segundo o caráter que ela mesma buscou. Mais grave ainda foi sua afirmação de que a relevância da OAB estava pautada em sua atuação no passado, quando era representada por figuras como Raimundo Faoro e Seabra Facundes, insinuando que a instituição perdeu seu papel relevante na sociedade atual.
Não se trata, portanto, de uma simples crítica lançada por um membro da cúpula do Judiciário. A OAB possui capilaridade e independência institucional suficientes para influenciar a opinião pública e se contrapor a qualquer arbítrio estatal. Enfraquecê-la ou desqualificá-la implica em uma ação premeditada de garantia de poder, uma tentativa de neutralizar um dos poucos contrapesos institucionais ao crescente poder do Judiciário.
Por tais razões, torna-se imperativo que a advocacia brasileira renove seu compromisso histórico com a defesa das liberdades individuais e do Estado de Direito. Isso significa, em primeiro lugar, que a instituição abandone sua recente letargia, alimentada por interesses pessoais de seus líderes, e atue com firmeza em prol das garantias constitucionais.
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Os advogados, individualmente e como classe, precisam relembrar seu juramento inicial como defensores da liberdade contra o arbítrio e guardiões de direitos fundamentais, valores que estão na base de qualquer sociedade que se pretenda justa e democrática. Este compromisso deve manifestar-se não apenas nos casos de grande repercussão, mas na prática cotidiana da advocacia, na defesa intransigente das prerrogativas profissionais e na vigilância constante contra qualquer tentativa de concentração excessiva de poder.
É necessário, portanto, que cada advogado sinta novamente a emoção de defender a liberdade, de fazer soar o “sino da liberdade” em um sistema que cada vez mais a ameaça. Não se trata apenas de uma questão profissional ou corporativa, mas de um compromisso ético com os valores fundamentais que sustentam uma sociedade verdadeiramente democrática.
A OAB, por sua vez, precisa honrar seu legado histórico e resistir às tentativas de diminuir sua importância ou restringir sua independência. Em um momento em que o cidadão se vê cada vez mais refém de um Estado hipertrofiado, a Ordem deve posicionar-se firmemente como defensora das liberdades individuais, da propriedade privada e dos limites constitucionais ao poder estatal. A liberdade, afinal, é como aquele sino que ecoou pela sala do tribunal: uma vez que seu som se faz ouvir, é impossível ignorá-lo ou silenciá-lo completamente.
Jully Heyder da Cunha Souza é advogado.