Em 28 de fevereiro de 2023, a Itaipu Binacional celebrou o pagamento das últimas parcelas da dívida contraída quase meio século antes para a construção da usina. Uma dívida que, ao longo das décadas, consumiu US$ 63,5 bilhões. Com a quitação, o custo da energia da hidrelétrica deveria imediatamente ter baixado de 28% a 40%, uma vez que grande parte da tarifa era destinada à amortização. Mas não foi o que aconteceu.
Os brasileiros estão há 20 meses pagando mais do que deveriam pela energia de Itaipu, e será assim pelo menos até o fim de 2026. A promessa do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é de que alguma redução ocorra apenas de 2027 em diante.
Isso significa que os brasileiros terão passado praticamente quatro anos pagando além do devido pela energia gerada na fronteira com o Paraguai – e isso se realmente houver queda da tarifa no início de 2027. Sócio do Brasil na hidrelétrica, o país vizinho arrancou concessões na negociação dos valores, e nada impede que tente fazer o mesmo no futuro.
As conversas entre os governos dos dois países para a revisão do Anexo C do Tratado de Itaipu – que dispõe sobre as bases financeiras e a prestação dos serviços de eletricidade da usina – começaram apenas em agosto de 2023, seis meses após a quitação da dívida. O ideal seria que a negociação tivesse ocorrido bem antes.
“Desde abril de 1973 já se sabia que 50 anos depois o Anexo C do Tratado de Itaipu precisaria ser revisto”, afirma um relatório da Frente Nacional dos Consumidores de Energia. De acordo com a entidade, o custo de operação da hidrelétrica binacional corresponde a cerca de 3,5% da conta de luz no Brasil.
Na contramão da esperada redução de tarifa, o governo do Paraguai fez intensa pressão por aumento. Chegou a bloquear o caixa da usina no início deste ano, o que atrasou pagamentos a funcionários e fornecedores.
Em maio, o governo brasileiro anunciou um acordo. Comunicou que, em vez de cair, a tarifa aumentaria. Em compensação, a usina se comprometeu a pagar uma espécie de reembolso ao sistema elétrico para evitar o repasse do reajuste ao consumidor.
Com o acerto, o Custo Unitário dos Serviços de Eletricidade (Cuse) de Itaipu subiu pouco mais de 15%, de US$ 16,71 para US$ 19,28 por quilowatt-mês (kW.mês). O correto, com a eliminação da parcela referente à dívida, seria ter baixado para algo entre US$ 10 e US$ 12 por kW.mês.
O Cuse é composto pelos valores necessários para o pagamento da dívida (já quitada), dos royalties e das despesas de exploração. Para a Frente Nacional dos Consumidores de Energia, ele nem sequer deveria ser objeto de negociação: “A tarifa que expressa o Cuse está definida no Tratado de Itaipu e em seus anexos como uma tarifa pelo custo, portanto, não se deve negociá-la, mas sim calculá-la”.
Governo brasileiro anunciou como vitória acordo que reajustou tarifa de Itaipu
O valor reajustado vigora entre 2024 e 2026 e foi anunciado pelo governo brasileiro como uma vitória, pois o lado paraguaio pleiteava mais de US$ 20 por kW.mês. Para evitar um reajuste ao consumidor, Itaipu vai repassar ao sistema brasileiro a soma de US$ 301 milhões, que serão subtraídos de seu plano de investimentos. Com isso, segundo o Ministério de Minas e Energia, o peso da usina na conta de luz não subirá. Mas também não cairá, ao menos por ora.
O acordo foi firmado pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e o presidente do Paraguai, Santiago Peña. Na ocasião, a pasta afirmou que “a medida garante a manutenção da tarifa, sem reajustes ao consumidor brasileiro, pois o governo tem priorizado o investimento em modicidade tarifária”.
O diretor-geral brasileiro da Itaipu, Enio Verri, corroborou e disse que o trato é benéfico para o consumidor brasileiro, por “não permitir reajustes nos próximos três anos e prever reduções tarifárias a partir de 2027”. “O Paraguai obteve algum aumento, mas esse aumento será financiado pelo caixa de Itaipu, portanto, a população brasileira não terá que pagar por essa tarifa”, pontuou Verri.
Mesmo quitada, Itaipu é a hidrelétrica com energia mais cara do país
Segundo cálculos da Frente Nacional dos Consumidores de Energia, Itaipu é a hidrelétrica mais cara do país. “Ineficiência operacional e elevados custos extras, alocados como despesas de exploração, contribuem decisivamente para esse quadro”, diz relatório da entidade.
De acordo com o estudo, o preço do megawatt-hora (MWh) de Itaipu em 2023, de R$ 294,50, corresponde ao triplo do preço médio de outras oito usinas já amortizadas, de R$ 95,50.
“Se comparado com o preço de Ilha Solteira [no Rio Paraná], a segunda usina amortizada mais cara (R$ 148,09), a diferença é quase o dobro”, diz o documento. A Frente também avaliou os custos de algumas usinas não amortizadas. Entre as analisadas, a mais cara é a de Santo Antônio, no Rio Madeira. Sua energia custa R$ 197,01 por MWh, 33% menos que a da binacional.
Itaipu banca ponte, rodovia, aeroporto, terras para indígenas, COP30 em Belém… e abrigo de emas no Alvorada
Depois do acordo entre os dois países, as despesas de exploração de Itaipu aumentaram mais de 40%, de US$ 1,5 bilhão em 2023 para US$ 2,2 bilhões em 2024, conforme o Valor Econômico. Mais de 80% desse valor é bancado pelos brasileiros, pois o Paraguai não consome toda a energia a que tem direito e vende o excedente ao Brasil.
Segundo a Frente Nacional dos Consumidores de Energia, “ineficiência, falta de transparência e uso político da imensa estrutura institucional são fatores acumulados ao longo do tempo e intensificados nos últimos anos”. “Uma das maiores hidrelétricas do mundo deveria ser um fator de competitividade para o desenvolvimento do país, mas verte recursos que transbordam em projetos e decisões políticas”, diz o texto.
Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil, critica o que chama de “orçamento paralelo”, em que os dois países investem em projetos não relacionados com energia, sem o escrutínio do Congresso e dos órgãos de controle de cada um dos países.
“O aumento da Cuse fere o espírito do Tratado de Itaipu, que prevê uma tarifa pelo custo. Como o custo caiu, a tarifa teria que cair. O Paraguai tem burlado isto, com a anuência do governo brasileiro, inflando a despesa de exploração com um montante cada vez maior de projetos socioambientais”, explica Sales.
Enquanto a tarifa não cai, recursos classificados como despesas de exploração de Itaipu têm sido destinados a projetos sem relação com a geração de energia. Nos últimos anos, a usina bancou a construção da segunda ponte entre Brasil e Paraguai, a duplicação da Rodovia das Cataratas, o asfaltamento da Estrada Boiadeira (BR-487) e a ampliação e reforma do aeroporto de Foz do Iguaçu.
Itaipu também está gastando R$ 1,4 bilhão em Belém do Pará para a realização da COP30 em 2025. Vai comprar terras para grupos indígenas que estão em conflito com agricultores no Oeste do Paraná. E até 2027 vai liberar mais de R$ 80 milhões para uma cooperativa ligada ao MST.
A usina investiu até mesmo num abrigo para filhotes de emas do Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente da República. Segundo a ex-funcionária de Itaipu e hoje primeira-dama Janja da Silva, que deu a ideia, a usina tem larga experiência com animais silvestres.
Para Sales, do Acende Brasil, o cashback proposto para evitar um aumento na conta de luz provavelmente será custeado com os recursos orçados para a parcela brasileira dos projetos socioambientais da Itaipu Binacional.
“Seria uma forma de aumentar as transferências ao Paraguai, já que o Brasil arca com cerca de 80% do custo da Itaipu Binacional, mas recebe apenas 50% do montante destinado aos projetos socioambientais. O Paraguai passaria a ampliar o seu “orçamento paralelo”, enquanto o do Brasil teria um aumento modesto, já que destinaria a maior parte para conter a elevação tarifária”, diz Sales.