Um novo escândalo irrompeu no Brasil: aposentados e pensionistas tiveram descontadas de seus benefícios mensalidades associativas sem o devido consentimento e/ou conhecimento que alcançam a casa dos bilhões de reais. A apuração foi iniciada pela Controladoria Geral da União que, juntamente com a Polícia Federal realizam a operação batizada de “Sem Desconto”. Das apurações formalizadas pela CGU, que é órgão de controle interno do governo federal e tem por escopo fiscalizar e promover a boa gestão pública, pode-se extrair que o órgão realizou 1.273 entrevistas de beneficiários diversos do INSS dos 27 estados da federação. Destes 1.273 beneficiários entrevistados, 1.242 (97,6%) informaram não terem autorizado o desconto e 1.221 (95,5%) disseram não integrar qualquer entidade associativa.
O início da apuração se deu a partir de um súbito e vertiginoso crescimento dos descontos realizados pelo INSS a título dessas mensalidades e, ainda, em razão da fragilidade dos controles do órgão previdenciário federa em relação aos descontos e do elevado número de pedidos formalizados por beneficiários do INSS para interrupção e cancelamento dos descontos que, em abril de 2024 atingiu um total de 192 mil pedidos.
Segundo o relatório da CGU, os descontos passaram de R$ 563,3 milhões em 2021 a R$ 1,3 bilhão em 2023, com potencial de alcançar R$ 2,6 bilhões até o final do ano de 2024. Em uma última consulta realizada na página da CGU, a seu turno, os responsáveis pela operação Sem Descontos afirmam que é possível que o total dos descontos supostamente indevidos atinja R$ 6,3 bilhões. Os números, realmente, assustam.
A despeito do escândalo e da carga política do fato, que somente fará acirrar ainda mais os ânimos dos brasileiros entrincheirados em suas perspectivas e convicções, possivelmente milhares, se não milhões de beneficiários do INSS merecem ser ressarcidos em razão desses descontos. Em princípio, entidades associativas conluiadas com agentes públicos teriam sido beneficiadas pelos indevidos descontos que foram realizados. Esse fato, se devidamente comprovado, implicará a responsabilização civil dessas entidades associativas, afinal, a lei em vigor estabelece que “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” (código civil, art. 927, caput). Entretanto, há um terceiro civilmente responsável por estes danos, se demonstrados. É o Estado.
Toda a administração pública deve observância aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, é mais que evidente a inobservância da eficiência, que impõe que a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional
As bases da responsabilidade civil do Estado vêm estabelecida no art. 37, § 6º da Constituição Federal. Segundo esse dispositivo, “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. Esse dispositivo constitucional foi reproduzido no código civil brasileiro (art. 43).
Esses dois dispositivos denotam a teoria do risco administrativo, adotada no direito brasileiro. Segundo essa teoria, o Estado é objetivamente responsável, isto é, independentemente de culpa, pelos danos causados no exercício da atividade administrativa. Vale dizer, se o dano decorrer de uma atuação administrativa, o Estado deverá ressarci-lo independentemente da demonstração de sua culpa.
No caso, a CGU apontou relevantes deficiências na atuação administrativa para a garantia da correta dedução das mensalidades associativas. Em seu relatório, a CGU afirmou que o INSS teve ciência de possíveis fraudes praticadas contra os seus beneficiários já em 2019, através da Recomendação n. 02/2019 da Procuradoria da República do Estado do Paraná. Após recepcioná-la, o INSS suspendeu o repasse das mensalidades associativas descontadas dos beneficiários a quatro entidades.
A despeito disso e das inúmeras representações e requerimentos de cancelamento dos descontos, a autarquia federal deixou de implementar “controles suficientes para mitigar os riscos de descontos indevidos, e seguiu assinando ACT após a suspensão ocorrida em 2019, com o crescimento significativo dos descontos a partir de julho de 2023 (…)”. Os ACTs são acordos de cooperação técnica que eram celebrados entre o INSS e as entidades associativas e, por eles, o INSS efetuava os descontos de seus aposentados e pensionistas das mensalidades associativas e repassava os valores às respectivas entidades.
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Toda a administração pública deve observância aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, é mais que evidente a inobservância da eficiência, que impõe que a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional. A Lei Federal 8.213/1991 autoriza os descontos de mensalidades associativas dos benefícios previdenciários, desde que autorizados pelos filiados dessas entidades (art. 115, V). No âmbito infralegal, é o art. 655 da IN PRES/INSS n. 128/2022 que trata da autorização para a dedução em folha das mensalidades associativas. Dispõe o referido artigo, dentre outras coisas, que para a realização dos descontos devem ser apresentados, pelas associações, confederações e entidades de aposentados e/ou pensionistas acordantes, os seguintes documentos: a) termo de filiação à associação ou entidade de aposentado e/ou pensionista devidamente assinado pelo beneficiário; b) termo de autorização de desconto de mensalidade associativa em benefício previdenciário devidamente assinado pelo beneficiário, constando o número do CPF; e c) documento de identificação civil oficial e válido com foto. Autoriza-se, ainda, que os documentos indicados nas alíneas “a” e “b” sejam formalizados em meio eletrônico, desde que observados os requisitos de segurança que permitam garantir sua integridade e não repúdio e, também que todos os documentos que forem disponibilizados em meio físico devem ser digitalizados e disponibilizados ao INSS.
Especificamente em relação aos descontos realizados a partir de 15 de março de 2024, a IN PRES/INSS 162/2024, passou-se a exigir assinatura eletrônica avançada e biometria para a assinatura do termo de adesão que autoriza o desbloqueio do benefício e a autorização do desconto. Ocorre que, como constatado pela CGU, “apesar de os requerimentos para cancelamento desses descontos (…) terem crescido acentuadamente a partir de julho de 2023 (…) alcança(n)do 192 mil em abril de 2024 (…) e indícios de irregularidades que vêm sendo apontados, o INSS limitou-se a suspender novas adesões de algumas entidades e por um curto período”. Além disso, a CGU também asseverou: “Entre as causas identificadas para os descontos não autorizados, destacam-se o não bloqueio automático para consignações dos benefícios concedidos antes de setembro de 2021, o não arquivamento, em ambiente prontamente acessível ao INSS, das documentações requeridas, a ausência de validação das documentações para autorização do desconto, a ausência de fiscalização e de auditoria desses procedimentos, a reduzida equipe técnica para atuar neste processo, e a fragilidade dos procedimentos de celebração de ACT, que não asseguram a integridade de procedimentos adotados pelas entidades convenentes”. Noutros termos, o INSS deixou de observar a eficiência, principalmente para resguardar os seus beneficiários que, conforme a lei, em sua grande maioria são obrigatoriamente vinculados a ele.
Ao INSS incumbe, nos termos do art. 2º do Decreto 10.995/2022, operacionalizar “I – o reconhecimento do direito, a manutenção e o pagamento de benefícios e os serviços previdenciários do Regime Geral de Previdência Social – RGPS; II – o reconhecimento do direito, a manutenção e o pagamento de benefícios assistenciais previstos na legislação; e III – o reconhecimento do direito e a manutenção das aposentadorias e das pensões do regime próprio de previdência social da União, no âmbito das autarquias e das fundações públicas, nos termos do disposto no Decreto nº 10.620, de 5 de fevereiro de 2021”. Evidentemente, portanto, que sendo responsável pela operacionalização do direito, manutenção e pagamento dos benefícios previdenciários e, de outro lado, em havendo possibilidade de descontos de tais mensalidades assistenciais desses benefícios, era seu dever garantir a legalidade e a regularidade desses mesmos descontos.
Por isso, a partir da teoria do risco administrativo e independentemente de comprovação da prática de crimes por servidores e/ou terceiros, havendo relação de causa e efeito entre a (má) atuação da autarquia e os danos suportados pelos aposentados e pensionistas, independentemente da culpa de servidores, há elementos suficientes para responsabilizar o Estado pelos prejuízos a que padeceram seus beneficiários, sem prejuízo do direito de regresso contra os que efetivamente atuaram para a ocorrência dos danos.
Lucas Pedroso Klainespecialista em Direito Tributário, é associado no escritório Marcelo Figueiredo Advogados Associados.