(Jr Guzzopublicado no jornal O Estado de S. Paulo em 5 de fevereiro de 2025)
Palavras têm a tendência de irem perdendo valor conforme a quantidade de vezes com que são usadas. Como o dinheiro, que vale cada vez menos quanto mais moeda houver circulando na praça, as palavras se desvalorizam — ficam baratas, e precisam ser usadas cada vez mais, ou com voz cada vez mais alta, para transmitir a mesma carga de significado. À certa altura, de tão repetidas, começam a perder o seu sentido original, e aí desaparece sua utilidade como meio de informar o que é, objetivamente, essa ou aquela coisa.
É o que está acontecendo com a palavra “fascismo”, ou com a sua derivada “fascista”. Deixou de descrever um movimento político criado na Itália e extinto há 80 anos e passou a ser um insulto. Não é nem mais uma palavra normalmente privativa das classes culturais, e utilizada em casos agudos de divergência com o pensamento de direita, mas ofensa em estado bruto — como “safado”, ou “canalha”, e daí para baixo. Quando não está sendo isso, “fascista” é simplesmente quem acha que Lula, o STF e a máquina estatal como um todo são um atraso de vida para o Brasil.
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Debatedores de metafísica política têm insistido muito nesse ponto: não se pode mais pensar que o fascista é apenas aquele sujeito que veste camisa preta, faz a saudação a Benito Mussolini e sabe cantar a Juventude. Isso é o que eles querem que se pense, para enganar as pessoas com a ideia de que o fascismo não existe mais. Mas segundo os árbitros que definem o que é vício e virtude hoje em dia, o fascismo não só continua existindo como nunca foi tão perigoso. É esse oceano de gente que infesta o mundo com sua recusa em aceitar a única fé permitida pelo presente “processo civilizatório” — a fé em Lula, no “globalismo”, na “mudança do clima” e no resto do evangelho que está aí.

Toda essa gente, segundo rezam as doutrinas do “campo progressista”, é um risco mortal para a civilização humana. É o que eles estão chamando, com angústia crescente, de “direita mundial”. São basicamente os que não concordam com os governos de esquerda — ou que se apresentam como tal. Seus desvios mais intoleráveis, pelo credo antifascista, começam com a crença de que o trabalho, o mérito individual e a livre iniciativa são as chaves para a ascensão social — e não o “Estado”. A partir daí, fica pior. Essas massas, desprovidas de consciência política e iludidas pelo “discurso demagógico” da “extrema direita”, acreditam que a família é a peça mais importante da sociedade. Acham que o ser humano tem só dois gêneros, masculino e feminino — e que só mulheres podem dar à luz. Não querem políticas sociais. Querem um celular novo.
Os fascistas de hoje querem votar nos candidatos que bem entenderem, em eleições livres, e não nos que foram aprovados pela USP, pela mídia ou pelo coletivo dos bispos. Querem se manifestar livremente na internet. Querem uma existência mais cômoda. Não estão interessados em {{aqui}} social, mas sim em ganhar dinheiro, o máximo possível, e subir de vida. Não gostam de nada que a esquerda e o governo gostam: bandidos, corrupção, educação sexual para crianças, Bolsa Família, aborto, drogas, morador de rua, Palestina etc. etc. etc. Em suma: são um horror social e têm de ser obrigatoriamente denunciados como “fascistas”. PGR neles. Polícia Federal neles. Xandão neles.
A democracia de Lula
Há três coisas, em especial, que deixam a esquerda fora de si diante do “fascismo” e dos “fascistas”, e de quem mais eles excomungam como sendo de “extrema direita”. A primeira é que todos os valores denunciados como direitistas fazem muito sentido, do ponto de vista lógico, para o cidadão comum. A segunda é o seu desejo de sair da pobreza, algo que as facções intelectuais acham irritante ao extremo — manifestam um desprezo colérico contra a classe trabalhadora quando ela se imagina capaz de empreender, construir uma vida própria e sair do lugar que lhe foi reservado pelos sociólogos. A terceira, e de longe a pior de todas, é a tendência da “extrema direita”, ou do “fascismo”, a ganhar eleições.
Eleições limpas, com escrutínio público e nas quais o papel do Estado se limita a contar os votos, são um alicerce fundamental das democracias. Hoje, para o “campo progressista” e para os intelectuais, transformaram-se numa ameaça. É um contrassenso. Eleições, a menos que sejam roubadas como as da Venezuela, não podem jamais colocar em risco a democracia, pois expressam a vontade da maioria — e a vontade da maioria é que decide quem tem de governar. Mas é isso, exatamente isso, que está dizendo a religião oficial antifascista. Os adversários podem ganhar, porque são eles que formam a maior parte do eleitorado — e eleição que a maioria ganha é um perigo mortal para a democracia, tal como ela é definida por Lula, o STF e a direção do PT.
Donald Trump ganhou a eleição nos Estados Unidos. Antes, Javier Milei tinha ganhado na Argentina. Antes dos dois, Giorgia Meloni ganhou na Itália. Teme-se, agora, pela próxima grande eleição — a da Alemanha. Em nenhum dos casos ocorreu aos analistas internacionais que o povo de cada um desses países escolheu com liberdade os seus novos governos. Foi um “retrocesso”. Foi um atentado contra a “civilização”. Foi essa e mais aquela desgraça. O sujeito oculto da frase é que a vontade do povo, quando favorece a direita, não é mais vontade do povo. É “populismo” — e “populismo” não pode ser admitido hoje no livro de regras, sobretudo quando os populistas são populares.
Eleição livre? E se um “fascista” ganhar? A coisa é cada vez mais viável, quando se leva em conta a multiplicação cada vez mais rápida de fascistas que estão por aí e têm título de eleitor. Como faz, então? Acabam as eleições ou acabam os fascistas? O STF ainda não formou maioria a respeito.
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