No julgamento em que o Supremo Tribunal Federal (STF) aceitou a denúncia contra mais 10 acusados de tramar um golpe de Estado em 2022, os ministros da Primeira Turma da Corte condenaram de forma veemente a quebra da hierarquia e da disciplina entre os militares que teriam participado das articulações.
Na sessão, Alexandre de Moraes, Flávio Dino e Cármen Lúcia criticaram as ações de integrantes das Forças Armadas que, segundo a Procuradoria-Geral da República (PGR), teriam tentado convencer o então comandante do Exército, Marco Antônio Freire Gomes, a aderir a uma intervenção militar no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
O objetivo, conforme a denúncia da PGR, era revisar o resultado da disputa presidencial, para manter no poder o ex-presidente Jair Bolsonaro e impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em janeiro de 2023.
Durante o julgamento, Moraes, relator do caso, expôs mensagens de WhatsApp desses militares com o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, em que tratavam sobre as chances de o ex-presidente assinar um decreto de estado de sítio ou defesa no TSE, e sobre as tentativas de convencer Freire Gomes a apoiar.
Para o ministro, dois fatos apresentados na denúncia evidenciariam uma quebra de hierarquia e disciplina dos militares envolvidos.
Para Moraes, Bolsonaro tentou cooptar general das forças terrestres
Confira:
- 1 Para Moraes, Bolsonaro tentou cooptar general das forças terrestres
- 2 Moraes diz que “carta golpista” era “veneno para atacar a Constituição”
- 3 Dino e Cármen também condenam quebra da disciplina e hierarquia
- 4 Para Dino e Moraes, réus do golpe eram mais radicais que militares da ditadura
- 5 STF tornou réus mais 10 acusados de golpe, mas livrou dois militares
O primeiro foi uma reunião ocorrida entre Bolsonaro e o general da reserva Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, também denunciado, em 9 de dezembro de 2022, no Palácio da Alvorada. Na antevéspera, segundo a denúncia, o ex-presidente teria apresentado a Freire Gomes a minuta do decreto, mas o ex-comandante do Exército teria rejeitado a medida. Bolsonaro, então, teria convocado Estevam Cals, então comandante do Comando de Operações Terrestres (Coter) para obter seu apoio.
Para Moraes, foi uma tentativa de cooptação.
“Como o general (Freire Gomes) foi contrário à tentativa de golpe, à expedição desse decreto que fecharia o TSE, prenderia algumas autoridades, que constituiria comissão eleitoral para nova eleição, que desvirtuaria o regime democrático de direito, o então presidente Jair Messias Bolsonaro teria procurado apoio no acusado, general Estevam, então comandante do Coter, que tem a atribuição de orientar e coordenar emprego de forças terrestres, que é um órgão de direção operacional do Exército, ao qual o Comando de Operações Especiais é vinculado”, detalhou o ministro.
“Essa tentativa de cooptação de Jair Bolsonaro do general Estevam seria então para obter esse apoio ou re-influenciar o comandante do Exército, ou não precisar dele. Ele não tem tropas, mas ele é quem coordena as tropas. Então ele teria acesso aos comandantes de área, do Sul, do Sudeste, do Norte, do Nordeste, do Centro-Oeste, do Planalto, da Amazônia”, continuou Moraes.
“Foi dito que é uma reunião normal, formal, de convocação do presidente da República, desse comandante de operações terrestres. Não é. Causou extremo mal-estar no Exército, nas palavras, em depoimento na polícia e ontem, do general Freire Gomes, porque quem se reúne com o presidente é o comandante do Exército. Lembrando que nem o ministro da Defesa tem autoridade constitucional e legal para determinar operações aos comandantes militares. Cada comandante militar decide as operações na sua força e só tem que obedecer em termos operacionais o comandante-em-chefe das Forças Armadas, que é o presidente da República”, emendou o ministro.
Moraes diz que “carta golpista” era “veneno para atacar a Constituição”
O segundo fato destacado foi uma reunião de militares das Forças Especiais – conhecidos como “kids pretos” – em 28 de novembro de 2022. Vários dos participantes assessoravam comandantes do Exército e o objetivo seria pressionar seus superiores a apoiar Bolsonaro a assinar o decreto.
Durante a manhã, advogados dos militares acusados citaram declaração de Mauro Cid que classificou esse encontro como “conversa de bar”. Moraes, no entanto, rechaçou a alegação, argumentando que nessa reunião teria sido elaborada a “Carta ao Comandante do Exército de Oficiais Superiores da Ativa do Exército Brasileiro”.
Nesse documento, publicado ainda em novembro de 2022, havia um apelo para que os “Poderes e instituições da União assumam os seus papéis constitucionais”, insinuando que o Exército teria papel na “pacificação política, econômica e social, especialmente para a manutenção da Garantia da Lei e da Ordem”.
“Essa carta golpista direcionada ao comandante do exército, de oficiais superiores, que pede que os militares não abandonem a nação, ela incorpora exatamente a ideia de que as Forças Armadas teriam que tomar o poder”, disse Moraes.
“São oficiais das Forças Armadas brasileiras desrespeitando a hierarquia e a disciplina, não bastasse desrespeitar a democracia, para vazar uma carta golpista, para pressionar o comandante do Exército. Nada de cerveja entre amigos, talvez veneno entre golpistas para atacar a Constituição”, afirmou ainda o ministro.
Ele destacou que, após a publicação da carta, Freire Gomes abriu inquérito para investigar os militares envolvidos por crime militar.
Dino e Cármen também condenam quebra da disciplina e hierarquia
Em seus votos, Flávio Dino e Cármen Lúcia concordaram com Moraes. O relator lembrou que, nessa época, o Brasil não passava por uma crise institucional. “A irresignação pelo resultado das urnas, isso não é crise institucional. Isso não justifica decreto de golpe, criação de gabinete de crise”, disse Moraes.
“No Estado Democrático de Direito, após o segundo turno das eleições, as Forças Armadas não têm que decidir nada, para que lugar nenhum o presidente da República vai. Quem perde a eleição numa democracia, seja no Brasil, seja na Inglaterra, seja na França, em Portugal, nos EUA, quem perde as eleições via para casa e vira oposição e tenta voltar”, afirmou o ministro.
Dino disse que o núcleo formado militares prova que houve uma tentativa de golpe armado. Depois, disse que a quebra de hierarquia e disciplina são valores “fundantes da identidade constitucional das Forças Armadas”. “O que distingue as Forças Armadas de um bando? Hierarquia e disciplina”, completou. “Forças Armadas sem hierarquia e disciplina, são em si mesmas uma ameaça ao Estado Democrático de Direito”.
Para o ministro, o julgamento dos militares deveria servir para acabar com a ideia, tradicional no meio militar, de que há “inimigos internos” a serem combatidos. “Isso deve ser definitivamente banido, porque só conduz a desastres na vida brasileira. Nunca deu certo”, disse; lembrou que isso circulou também em 1954 e 1964.
Cármen Lúcia destacou que a hierarquia e disciplina não podem ser quebradas nas Forças Armadas. “Porque se quebra a disciplina e hierarquia, se quebra a coluna vertebral da organização do Estado como força legítima. A quebrar essa hierarquia, nós temos o direito da força, e não a força do direito, que é quando se perde o Estado Democrático de Direito, que é o que foi tentado”, disse a ministra.
Depois, disse que a criação de inimigos internos serve para tentativas de manter o poder à força. “O que acontece normalmente é a criação de inimigos fantasmas, que alguém rotula como sendo fulano ou beltrano. O que se quer e o que se quis, pelo que se demonstra até aqui indiciariamente, é manter no poder”, afirmou.
Para Dino e Moraes, réus do golpe eram mais radicais que militares da ditadura
Dino e Moraes ainda lembraram que, no regime militar, embora tenham ocorrido cassações de ministros do STF, não havia planos de matá-los, como teria ocorrido em 2022, nem cogitação de descumprir decisões da Corte.
“As decisões contra os ditadores eram cumpridas. E hoje há pessoas que dizem que decisões do Supremo não podem ser cumpridas, exatamente na linha do inimigo interno que infelizmente continua a ser atual. E ninguém cogitou matar Evandro Lins e Silva, Vitor Nunes Leal e Hermínio Lima”, afirmou Dino.
Moraes relatou que, entre generais que presenciaram o golpe de 1964, não havia a ideia de desmoralizar o Judiciário. “Eu ouvi desses generais o seguinte: em 1964, as Forças Armadas nunca pensaram em desmoralizar o Poder Judiciário, porque nem o golpe gostaria disso, porque aí é anarquia. Se desmoraliza o Poder Judiciário não há país a ser construído”, disse o ministro.
“Eles disseram que nem os mais radicais, depois de 1968 no AI-5, pensaram em matar ministros do Supremo Tribunal Federal. O que se mostra, a conclusão desses generais, é que foi uma tentativa de golpe dos mais radicais dos radicais, seria uma chacina se fosse praticado”, completou.
STF tornou réus mais 10 acusados de golpe, mas livrou dois militares
No julgamento desta terça, foi aceita a denúncia contra mais 10 acusados, que agora se tornarão réus:
- Bernardo Romão Correa Netto (coronel);
- Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira (general da reserva);
- Fabrício Moreira de Bastos (coronel);
- Hélio Ferreira Lima (tenente-coronel);
- Márcio Nunes de Resende Júnior (coronel);
- Rafael Martins de Oliveira (tenente-coronel);
- Rodrigo Bezerra de Azevedo (tenente-coronel);
- Ronald Ferreira de Araújo Júnior (tenente-coronel);
- Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros (tenente-coronel; e
- Wladimir Matos Soares (agente da Polícia Federal).
A Primeira Turma rejeitou a denúncia contra dois militares: o coronel da reserva Cleverson Ney Magalhães e o general Nilton Diniz Rodrigues.
Os ministros concluíram que não havia indícios suficientes de que os dois teriam participado da reunião de novembro nem participado da elaboração da carta para convencer os comandantes do Exército a aderir ao golpe.
“As defesas bem apontaram que a denúncia se sustenta apenas na menção dos nomes dos dois acusados”, completou o ministro. Os demais não só teriam participado ativamente do encontro ou então se envolvido na operação de campo, chamada “Copa 2022”, em dezembro daquele ano, para tentar executar o próprio Moraes.
Durante a manhã, os advogados de cada um deles subiram à tribuna da Primeira Turma para rebater as acusações. Muitos citaram declaração do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, que chamou de “conversa de bar” o encontro de novembro dos militares das Forças Especiais.
“Se fosse para tomar cerveja com amigos, não haveria necessidade de excluir mensagens e alertar que muitas coisas vazam”, rebateu Moraes.