Em 18 de maio de 1987, profissionais da saúde mental, familiares de pacientes e sobreviventes de internações compulsórias se reuniram em Bauru, no interior de São Paulo, para denunciar as práticas violentas e excludentes dos hospitais psiquiátricos brasileiros. Nascia ali o marco simbólico da luta antimanicomial no Brasil. Desde então, o dia 18 de maio tornou-se um lembrete anual do compromisso com uma saúde mental centrada em direitos, escuta e dignidade.
Entre os nomes que forjaram esse caminho de resistência, Nise da Silveira ocupa lugar de destaque. Médica psiquiatra formada nos anos 1920, foi pioneira ao desafiar as práticas hegemônicas e violentas da psiquiatria tradicional. Seu legado foi imortalizado no filme Nise: O Coração da Loucura (2015), dirigido por Roberto Berliner, que além de contar sua trajetória, ajuda a compreender o processo histórico de transformação da saúde mental no Brasil.
O filme narra o retorno de Nise ao Hospital Pedro II, no Engenho de Dentro, zona norte do Rio de Janeiro, após anos de afastamento político. Ao recusar o uso de eletrochoques e lobotomias – práticas rotineiras na psiquiatria da época –, foi isolada pelos colegas e transferida para o setor de Terapia Ocupacional, considerado irrelevante. Foi justamente nesse espaço marginalizado que ela promoveu uma revolução silenciosa: abriu as portas da oficina de arte e deixou os internos criarem. O que se viu ali foi um desabrochar de subjetividades.
O filme permite uma rica análise à luz da História da Psicologia, revelando os embates entre a psiquiatria autoritária e uma nova psicologia que começava a se consolidar. A trajetória de Nise da Silveira representa a passagem de uma psicologia filosófica e médica – ainda subordinada à lógica biológica – para uma psicologia científica, sensível ao simbólico, ao inconsciente e à subjetividade.
Mais do que nunca, é preciso defender uma psicologia comprometida com os direitos humanos, com a escuta da diferença e com a valorização da vida. A clínica precisa ser lugar de vínculo, não de vigilância. O diagnóstico precisa abrir portas, não selar destinos
Nesse contexto, Nise resgata a tradição psicanalítica de Freud ao considerar os sintomas como expressões de conflitos internos, e não como falhas a serem corrigidas. A criação artística se torna, então, uma via legítima de escuta do inconsciente. A prática de Nise também dialoga com a Gestalt-terapia, ao valorizar a expressão emocional no presente, o contato com o ambiente e a autorregulação. Como na cena em que o paciente Carlinhos lhe entrega um punhado de terra e ela o encoraja a plantar, o gesto simbólico revela um espaço terapêutico centrado no “aqui e agora”, onde reorganizar-se torna-se possível.
Já os conceitos de Erik Erikson – como a crise de identidade e o papel das relações de cuidado no desenvolvimento – aparecem de forma sutil nas relações de Nise com os pacientes. O contato visual com Angelina, a despedida emocionada de Emilio de Barros na festa junina, a valorização do vínculo e da escuta – tudo isso simboliza a recuperação da dignidade e da autonomia. Em vez de enclausuramento, reinserção social.
Ao instaurar práticas de cuidado centradas na escuta, Nise desafiou não apenas a técnica médica, mas todo um sistema institucional. O embate com os psiquiatras do hospital revela mais do que uma disputa metodológica: escancara as estruturas de poder descritas por Michel Foucault. O hospital psiquiátrico, nesse modelo, funcionava como máquina de controle e silenciamento – uma prisão de mentes.
Nesse contexto, o uso de animais terapêuticos, a valorização da arte e a recusa ao enclausuramento constituem atos políticos. Ao recusar seguir ordens que violentavam subjetividades, Nise não apenas questiona os limites da medicina, mas também resgata o compromisso ético da psicologia com a libertação humana.
O reconhecimento tardio de seu trabalho, simbolizado pela exposição internacional das obras criadas pelos internos do Engenho de Dentro, não foi apenas uma vitória pessoal. Foi a confirmação de que uma nova psicologia – ética, sensível, comprometida com a transformação – estava em marcha. Como aponta o filme, a arte tornou-se ponte entre a loucura e a criação, revelando que o delírio, muitas vezes, é apenas outra forma de linguagem.
Se Nise da Silveira plantou as sementes, a Reforma Psiquiátrica brasileira foi o terreno onde essas ideias floresceram. Aprovada em 2001 após mais de uma década de tramitação, a Lei 10.216 redirecionou o modelo assistencial em saúde mental, instituindo a política de desinstitucionalização e substituindo os hospitais psiquiátricos por serviços comunitários, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
A lei estabelece princípios fundamentais: o direito à liberdade, à privacidade, à escuta, à escolha do tratamento e à participação no plano terapêutico. Também define que a internação só deve ocorrer quando os recursos extra-hospitalares forem insuficientes, e mesmo assim, com tempo limitado e supervisão rigorosa.
A Resolução 487/2023 do Conselho Nacional de {{aqui}} (CNJ), que institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário, reforça esse compromisso, especialmente nos contextos criminais. Ela prevê o fechamento dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico e orienta os juízes a adotarem medidas que respeitem a dignidade e os direitos das pessoas com sofrimento psíquico.
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A Reforma Psiquiátrica, embora ainda enfrente desafios de implementação, promoveu avanços notáveis: melhorou a qualidade de vida de milhares de brasileiros, reduziu o estigma em torno da saúde mental e fortaleceu a rede de atenção psicossocial em todo o país. No centro de tudo isso, permanece a arte – esse território onde a loucura ganha voz, cor e forma. O ateliê criado por Nise não era apenas um espaço lúdico, mas um laboratório clínico de subjetividades. A arte revelou-se como uma espécie de escuta sem palavras, capaz de acessar zonas profundas do psiquismo humano.
Pacientes como Raphael Domingues, Carlos Pertuis e Fernando Diniz – cujos trabalhos integram hoje o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente – mostraram que a criação artística, quando acolhida como expressão legítima, transforma tanto o criador quanto o espectador. Um crítico chega a afirmar no filme que um dos internos era “um artista maravilhoso”. Aquela que era considerada “gente inútil” pela lógica manicomial passa a ser vista como fonte de beleza e saber. A escuta sensível proposta por Nise reconfigura os parâmetros do cuidado: o que antes era silenciado pela camisa de força ganha espaço no cavalete. O que antes era considerado ruído, torna-se símbolo. A criação deixa de ser “terapia ocupacional” e se torna um ato de resistência.
Relembrar Nise da Silveira e a Reforma Psiquiátrica não é apenas um exercício histórico. É, acima de tudo, um alerta ético. Em um cenário contemporâneo onde o sofrimento mental cresce – especialmente entre jovens, pessoas em situação de rua, mulheres e populações periféricas –, o risco de retrocessos é real. Projetos de lei tramitam no Congresso tentando reabilitar os manicômios sob novos nomes. Cortes de verba ameaçam a manutenção dos CAPS. E a lógica da patologização avança sob roupagens modernas.
Mais do que nunca, é preciso defender uma psicologia comprometida com os direitos humanos, com a escuta da diferença e com a valorização da vida. A clínica precisa ser lugar de vínculo, não de vigilância. O diagnóstico precisa abrir portas, não selar destinos. A avaliação psicológica deve enxergar potência onde o olhar comum vê apenas disfunção. Como nos lembra a trajetória de Nise, o cuidado em saúde mental só é eficaz quando humaniza, escuta, acolhe e acredita. O resto é contenção.
Ao olhar para Nise: O Coração da Loucuranão vemos apenas um filme biográfico. Vemos a história de uma mulher que ousou escutar. E que, ao escutar, libertou. Nise da Silveira não curou todos os seus pacientes, mas deu a eles o que ninguém mais havia oferecido: um espaço para existir. Sua obra continua viva nos CAPS, nas políticas públicas, nos museus do inconsciente e, sobretudo, nas vozes de quem luta por uma psicologia que seja, antes de tudo, ética. Uma psicologia que, como a arte, não busca consertar, mas revelar. E talvez seja esse o verdadeiro coração da loucura: não o lugar do desvario, mas da criação; não o fim da razão, mas o início do encontro com a humanidade.
Modol Schrainer ‘ é graduanda de Psicologia, doutora e mestre em Administração, especialista em Docência do Ensino Superior, professora de graduação, MBA e mestrado, e empresária. Autora do livro “Glossário da Superdotação” (Editora Arcádia, 2024), “Teddy Roosevelt para Crianças” (Editora Arcádia, 2022). Foi ResearcherFellow na Universidade de Graz, Áustria e é vice-presidente da Associação Superdotação no Mapa.