É uma imensa alegria para os fiéis católicos, e uma grande comoção para o mundo inteiro, a eleição de um novo Bispo de Roma, um novo Papa, do qual se espera que seja um guardião da Fé e um pastor segundo o Coração de Jesus, o Bom Pastor! Leão XIV, o novo Papa da Igreja Católica, é agostiniano; assim se apresentou: “Sou um filho de Santo Agostinho, (…) que disse: ‘convosco sou cristão e para vós sou bispo’” (Primeira Bênção Urbi et Orbi em 08/05/2025). Neste espírito alegre e de confiança em Deus, reflitamos sobre o modelo e a doutrina do santo patrono da ordem do Papa, Agostinho de Hipona, na medida em que isto poderia nos trazer indicações a respeito dos possíveis caminhos do novo pontificado. O grande Padre da Igreja, o “Doutor da Graça”, dissera que “não acreditaria nos Evangelhos se a isso não o conduzisse a autoridade da Igreja católica”, e que “a Sé Romana encerra as causas da Fé”.
Santo Agostinho, africano de Tagaste, na região que hoje é a Argélia, sempre foi considerado “dos melhores mestres” da Igreja, segundo as palavras do Papa São Celestino I, proferidas no século V. Ele, que não fora batizado quando criança, tivera uma vida mundana, cheia de vícios, conforme declara na sua obra Confissões; viveu em concubinato e teve um filho, Adeodato, por quem nutria profundo amor e que viria a falecer logo depois do Batismo de ambos. Professor de retórica em Milão, tendo conhecido a obra de Marco Túlio Cícero, apaixonou-se pela filosofia, e tornou-se um buscador da verdade. Seguiu a seita filosófico-religiosa dos maniqueístas, gnósticos dualistas que atribuíam maldade ao mundo material, e que criticavam a Igreja e as Escrituras cristãs, mencionando de modo positivo, contudo, o nome de Jesus Cristo. Posteriormente, Agostinho conheceu a filosofia neoplatônica, pela qual reconheceu a verdadeira realidade metafísica ou espiritual, e ouviu falar do Logos ou Intelecto Divino. Ouvindo por gosto os sermões de Santo Ambrósio, Bispo de Milão, assim como a música sacra (canto ambrosiano similar ao que seria chamado gregoriano), aos poucos foi se comovendo no coração e se convencendo intelectualmente da verdade cristã, convertendo-se e recebendo o Batismo, inundando assim de alegria o coração de sua mãe, Santa Mônica, que rezara incessantemente pela conversão do filho. Decidido a viver consagrado à contemplação da verdade, voltou a Tagaste, vendeu seus bens, doando o dinheiro aos pobres, e fundou uma comunidade monástica com os amigos. Depois de perder a mãe e o filho, foi ordenado sacerdote em Hipona pelo Bispo Valério, e posteriormente bispo auxiliar, assumindo o bispado quando da morte do titular.
Dentre suas inúmeras obras de filosofia e teologia, gostaria de destacar, pelo espaço, três: as suas Confissõesa Cidade de Deus e A Trindade. A primeira é um magnífico relato autobiográfico que narra sua aventura existencial e intelectual em busca da Verdade; lá ele nos diz: “Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova… Tarde Te amei!” E ainda: “Fizeste-nos, Senhor, para Ti, e o nosso coração anda inquieto enquanto não descansar em Ti!”. Além da refinadíssima análise do coração ou da intimidade humana, de nossa psicologia ou subjetividade, nesta obra várias questões filosóficas cruciais são tratadas com uma originalidade e brilhantismo nascidas do encontro do gênio de Agostinho e da luz de sua Fé católica: a “memória”, o “mal”, o “tempo”… temas em que a abordagem agostiniana se tornou clássica e obrigatória para os estudiosos da filosofia. Depois, temos sua obra monumental, a Cidade de Deusem que faz uma apologia do Cristianismo diante da acusação dos pagãos, de que a caridade cristã teria “enfraquecido” o Império. Agostinho desenvolve uma grandiosa teologia da história, cujo núcleo seria a realidade dos dois amores fundamentais: “dois amores fundaram duas cidades: o amor daqueles que amam a si mesmos a ponto de desprezar a Deus fundou a Cidade dos Homens; o amor daqueles que amam a Deus a ponto de desprezarem a si mesmos fundou a Cidade de Deus”. Com o qual o santo estabelece que só em torno do amor de Deus que se manifestou em Jesus Cristo pode haver uma autêntica convivência amorosa e pacífica neste mundo, a caminho da “Jerusalém Eterna”. Finalmente, em A TrindadeSanto Agostinho desenvolve o primeiro grande tratado sobre o principal dogma da Fé cristã, o mistério de Deus Uno e Trino, Pai, Filho e Espírito Santo, estabelecendo uma analogia que marcaria toda a especulação teológica trinitária, bem como a mística católica, a partir da noção revelada de que o homem é “imagem de Deus”: as faculdades de nossa alma são um espelho da Santíssima Trindade, na memória, na inteligência e na vontade, ou ainda, no ser, no conhecimento e no amor.
A primeira é um magnífico relato autobiográfico que narra sua aventura existencial e intelectual em busca da Verdade; lá ele nos diz: “Tarde Te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova… Tarde Te amei!”
Quero destacar também sua obra de defensor da ortodoxia, que brigou contra as principais heresias (deturpações doutrinais) de sua época, especialmente: o donatismo, o maniqueísmo e o pelagianismo. O donatismo, seita herética e cismática, possuía uma doutrina moral rigorista, dura de coração, e queria proibir o perdão e invalidar os sacramentos dos sacerdotes que haviam caído em heresia e depois se arrependeram. Diante do donatismo, Santo Agostinho defende a misericórdia divina, pois por experiência própria sabia que mesmo os piores pecados poderiam receber o perdão e graça divinas, se os pecadores se arrependem e confessam humildemente sua culpa. O maniqueísmo era uma variação do gnosticismo dualista oriundo da Pérsia, e acreditava em dois princípios da realidade, uma divindade boa criadora do espírito (na realidade, matéria sutil), e uma divindade má criadora da matéria (grosseira ou visível); o homem já seria divino no fundo, e a redenção consistiria em conhecer essa divindade e se afastar da matéria com práticas ascéticas. Perante essa variação do gnosticismo (conjunto de doutrinas heréticas dualistas e soberbas, que S. Irineu de Lyon já havia enfrentado no século II), Agostinho afirmou a bondade da criação saída das mãos do único Deus, e estabeleceu a doutrina da insubstancialidade do mal, o qual é apenas privação do bem em algo real: assim como a escuridão é ausência de luz, a cegueira o é da visão, e o pecado ou mal moral é a ausência da correta ordenação da vontade, que se inclina aos bens psíquicos ou sensíveis inferiores, voltando-se contra Deus ou a reta ordem do amor. Os pelagianos, finalmente, acreditavam que o pecado original não deixara sua marca na natureza humana, que Adão era apenas um “mal exemplo”, e que Jesus um “bom exemplo” que poderíamos seguir com os recursos de nossa própria natureza. Em face do pelagianismo, Santo Agostinho ressaltou a herança do pecado original na natureza humana (segundo o ensinamento bíblico de São Paulo), que nos impede de seguir a Verdade divina e viver o bem sem o auxílio da graça de Cristo, o qual fez com que o santo ganhasse o epíteto de “Doutor da Graça”; a controvérsia antipelagiana fez com que Agostinho acentuasse também o problema da predestinação (que, fora desse contexto de polêmica, adquiriria contornos dramáticos no período da “reforma protestante”, especialmente com a ideia ímpia de que Deus, ao seu bel prazer, predestinaria alguns homens ao inferno). Para Santo Agostinho, “todo o nosso trabalho neste mundo consiste em curar o olhar do coração para poder ver a Deus”.
O que a herança doutrinal e o paradigma de santidade agostinianos poderia representar a respeito do programa do pontificado recém iniciado? A verdade é que só saberemos bem com o correr do tempo, dos discursos, dos documentos e ações de Leão XIV. Mas podemos especular algumas coisas de modo razoável, também a partir do que já ouvimos do Papa em seus primeiros discurso e homilia.
Ser agostiniano é viver centrado no Amor de Deus, confiando enormemente em sua Misericórdia, na bondade da criação, tendo, porém, bastante clareza dos limites humanos e do mal do pecado, reconhecendo que, numa sociedade construída de costas para Deus e para Cristo, a {{aqui}} não pode prosperar. É fazer, como Santo Agostinho, do relacionamento com Cristo o que há de mais importante na existência, num “compromisso com uma jornada diária de conversão” (Homilia na Missa com os Cardeais eleitores em 09/05/2025). Podemos, assim, esperar que Leão XIV, enquanto agostiniano, renove o chamado à paz do Papa Francisco e do Concílio Vaticano II, estabelecendo com maior clareza que Cristo é o fundamento da fraternidade, e que nosso destino é a Jerusalém Celeste: “podemos caminhar todos juntos em direção à pátria que Deus nos preparou” (Primeira Bênção Urbi et Orbi em 08/05/2025). Que ele permaneça acentuando a Caridade pastoral, manifestando, contudo, a necessidade da graça da conversão. Que siga anunciando a bondade da criação e a necessidade do zelo ecológico, porém acentuando a prioridade do cuidado da vida interior.
Assim como a escuridão é ausência de luz, a cegueira o é da visão, e o pecado ou mal moral é a ausência da correta ordenação da vontade
Ademais, a espiritualidade agostiniana acentua a unidade da Igreja fundada na Fé, a liberdade dos filhos de Deus naquilo que não é absolutamente obrigatório, e a Caridade em todas as coisas. É possível esperar – e é desejável que aconteça – que o novo Sumo Pontífice esclareça os pontos ambíguos (que ferem indiretamente a ortodoxia católica) de documentos como Ame a felicidade ou Fiduccia supliccansque autorizaram, respectivamente e de modo “pastoral”, a comunhão eucarística para pessoas divorciadas recasadas, e a bênção não litúrgica para pessoas homossexuais afetivamente unidas, permitindo a distorção prática das doutrinas do matrimônio e da castidade, do pecado e da graça; e também que ele volte a liberar a missa chamada “tridentina” (missa romana antiga codificada mas não elaborada por São Pio V ), revogando sua restrição e retomando o espírito de Bento XVI, de reconciliação na Igreja e apaziguamento da “querela litúrgica”, valorizando o tesouro sagrado da liturgia tradicional, e quiçá retomando a “reforma da reforma (litúrgica)”, para a melhoria do rito da missa criado após o Concílio Vaticano II.
Viva o Papa! Que ele nos recorde as verdades da tradição católica, que enfrente corajosamente os males de nossa época, no mundo e no interior da Igreja, e que nos mostre que o sentido do tempo é sua abertura à eternidade!
Joathas Bello é doutor em Filosofia pela Universidade de Navarra e autor do livro “O Enigma do Concílio Vaticano II”.