Em seu primeiro pronunciamento depois de ter sido escolhido como líder da Igreja Católica, Leão XIV disse ser um “filho de Santo Agostinho”.
Ele também tem sido descrito como o primeiro papa “agostiniano” — o que, embora tecnicamente correto, é também uma imprecisão. De certa forma, todos os papas dos últimos 15 séculos foram agostinianos.
A influência de Santo Agostinho sobre a Igreja Católica só é comparável à de São Tomás de Aquino, que viveu 800 anos depois.
A importância teológica deste bispo nascido na África é tão grande que deixou sua marca nas convicções teológicas de um dos principais ramos do protestantismo.
Agostinho é reconhecido como santo não só na Igreja Católica, mas também na Ortodoxa, na Luterana e na Anglicana.
Africano imerso na cultura romana
Agostinho nasceu em Hipona, uma cidade romana no norte da África (em uma área hoje pertencente à Argélia). O pai dele era um oficial a serviço de Roma, o que garantiu ao jovem uma vida tranquila — apesar de não abastada — e uma educação de qualidade.
Agostinho, portanto, era africano mas estava imerso em uma cultura romana e sob a influência indireta da civilização grega. Estudioso da filosofia de Aristóteles e Platão, ele foi membro da herética seita dos maniqueus (de onde vem o termo “maniqueísta”) antes de se converter.
Depois de concluir seus estudos em cidades romanas no norte da África, incluindo Cartago, Agostinho foi professor de retórica em Roma e Milão. Mas ele decidiu retornar à terra-natal — onde havia deixado um filho que teve com uma de suas muitas companhias femininas. Já convertido ao Cristianismo, ele se tornou sacerdote em 391 e foi promovido bispo de Hipona em 396, quando tinha 45 anos. Agostinho ocupou o cargo até a morte.
Em 430, Hipona foi cercada pelos vândalos, uma tribo bárbara que vinha atacando o Império Romano e suas províncias. Em meio ao bloqueio, Agostinho morreu. Ele tinha 76 anos de idade, e provavelmente sua saúde havia sido afetada pela falta de suprimentos.
Confissões íntimas
A obra de Agostinho concilia uma visão teológica bem-articulada, uma prosa de qualidade e um tom pessoal que era incomum para autores daquele período.
O bispo de Hipona viu de perto o colapso do Império Romano, o que o marcou profundamente. É nesse contexto que Agostinho elaborou A Cidade de Deus. Na obra, ele contrasta o reino falho e imperfeito da vida material (a Cidade dos Homens) com a perfeição do reino dos céus (a Cidade de Deus).
Em ConfissõesAgostinho faz um relato em que mistura a sua autobiografia com reflexões sobre a natureza de Deus. A obra narra o processo de conversão de Agostinho, aos 32 anos de idade — em grande parte graças à influência da mãe, Mônica.
Boa parte do livro relata a luta de Agostinho contra sua natureza pecaminosa, que ele chama de “a insaciável concupiscência”.
Agostinho era um libertino antes de se tornar cristão. “Quero recordar as minhas torpezas passadas e as depravações carnais da minha alma, não porque as ame, mas para Vos amar, ó meu Deus”, ele escreve, em Confissões.
O caráter intimista da obra transparece em frases como “Eu, jovem tão miserável, sim, miserável desde o despertar da juventude, tinha-Vos pedido a castidade, nestes termos: ‘Dai-me a castidade e a continência; mas não agora’”.
Confissões também traz reflexões teológicas. Por exemplo: o que fazia Deus antes de criar o universo? Nada, já que o próprio tempo surgiu junto com a criação — uma ideia que seria corroborada muitos séculos depois pela física moderna e o conceito de espaço-tempo.
No livro, ele afirma que o mau não existe como substância, porque tudo o que Deus criou é bom. O mau é apenas a ausência de Deus.
Em Cidade de DeusAgostinho ainda levanta a hipótese de que os seis dias da Criação, descritos em Gênesis, talvez não tenham sido seis dias literais, e sim períodos distintos do processo de criação.
A influência de Agostinho foi tão grande que também se desdobrou sobre o protestantismo. João Calvino, um dos principais teólogos protestantes e figura na Igreja Presbiteriana, era um admirador de Agostinho. A tese calvinista sobre o livre-arbítrio e as consequências universais do pecado foi diretamente influenciada por Agostinho.
Quem são os agostinianos
O papa Leão XIV é um agostiniano porque pertence à Ordem de Santo Agostinho (OSA).
A Ordem de Santo Agostinho ganhou corpo em 1256, embora seguidores do bispo de Hipona já se organizassem em comunidades independentes. Apenas em 1912 é que os agostinianos receberam da Igreja o título de Ordem Religiosa autônoma. Hoje, a OSA está presente em cerca de 45 países. A ordem chegou ao Brasil em 1899.
A regra número 1 da OSA é “Viver unânimes tendo um só coração e uma só alma para Deus, porque a concórdia é a primeira finalidade da nossa vida em comunidade”.
Os agostinianos são conhecidos pela ação social e pelas iniciativas educacionais. O Colégio Santo Agostinho, um dos mais tradicionais do Rio de Janeiro, é administrado pela Ordem dos Agostinianos Recoletos, que tem 1.200 religiosos.
Outra entidade mantida pelos discípulos de Santo Agostinho é a Universidade Villanova, nos arredores da Filadélfia, nos Estados Unidos. Foi lá que o novo papa estudou Matemática entre 1973 e 1977, logo antes de entrar para o seminário.