Já tem sido um verdadeiro escárnio ver o presidente Lula se apresentar como um nobre defensor do liberalismo contra o protecionismo trumpistaao lado de nada menos que a ditadura chinesa. Resta demonstrado, porém, que tudo pode piorar.
O ministro Alexandre de Moraes, não satisfeito com sua notoriedade no Brasil, parece estar em uma jornada para virar ícone mundial. Na revista nova iorquinoele apareceu em um detalhado perfil, intitulado O jugde brasileiro assumindo a extrema direita digitalcomo um destemido soldado contra o extremismo, que estaria, por isso mesmo, na mira de Donald Trump, Jair Bolsonaro e Elon Musk. Podemos utilizar esse espetáculo de exibicionismo para tentar compreender melhor a percepção do próprio personagem sobre seu lugar na vida pública, o que certamente será útil aos futuros historiadores.
Para os repórteres da publicação, Moraes dissertou que o Brasil tem sido vítima de um “abuso da liberdade de expressão para ofender, ameaçar e coagir”, conduzido por uma coalizão internacional de “extremistas populistas de direita” que teria no bolsonarismo sua face nacional mais visível. De acordo com o ministro do STF, esse gênero de populistas percebeu o poder da internet depois da Primavera Árabe e aprendeu a utilizar os algoritmos das redes sociais a favor de “martelar” suas agendas com uma repercussão outrora inigualável.

Foi nesse contexto que Moraes proferiu a esdrúxula ideia de que os nazistas, se tivessem a oportunidade, teriam utilizado o X para conquistar o mundo (em vez de censurá-lo para esquivar-se dos contrafactuais e da liberdade de crítica de suas teses absurdas, como seria de se esperar). Esse populismo teria tido sucesso em perverter palavras como “liberdade”, colocando-as a serviço de suas pretensões golpistas e autoritárias.
Moraes reafirmou para a reportagem suas convicções antigas sobre a necessidade da repressão dura a criminosos, porque as pessoas precisam saber claramente que as violações à lei têm consequências. Lembrou que a esquerda o odiava quando chegou ao posto, nomeado por Michel Temer, e hoje é “alvo” da direita. A seu juízo, suas posições são coerentes com sua “missão”: proteger a instituição que ocupa com “mão de ferro” do que considera uma ameaça existencial declarada pelos “inimigos reacionários”.
Insistiu na ideia delirante de que os atos de vandalismo de 8 de janeiro poderiam ser parte de uma estratégia ampla para um golpe de Estado que poderia receber o apoio de governadores estaduais e policiais militares de outras regiões. Isso justificaria seu ato antidemocrático de suspender o governador do Distrito Federal na época. “Houve definitivamente um risco” de a democracia acabar no Brasil, garantiu Moraes, “e ainda há”. O ministro ratificou que temia por sua vida e que “o herói do filme tem que continuar” — o herói, evidentemente, sendo ele próprio; o filme, a vida pública brasileira, na qual supostamente ele e seus pares teriam o papel de guerreiros de um honroso exército destinado a defender o país das forças do mal (dentro e fora do Brasil).
O mosaico se completa, porém, na matéria mais recente da O economistaAssim, O juiz que governaria a internet. O texto começa reconhecendo que apenas no Brasil, onde a Suprema Corte dispõe de tanto poder, um fenômeno como o de Alexandre de Moraes se tornaria possível. Surpreende, no entanto, ao relatar que Moraes considera a si mesmo um “liberal clássico” (minha santa Aquerupita!) que defende “o governo republicano e um papel limitado do Estado na economia”. Conforme a reportagem, mais do que uma questão ideológica, o problema de Moraes com o bolsonarismo seria “pessoal”, o que seria sugerido por uma declaração que o texto lhe atribui: “As pessoas estão começando a perceber que não adianta muito me ameaçar. Elas só vão perder tempo — ou vão para a cadeia”.
Curiosamente, a reportagem da O economista adota um tom de muito mais receio do poder que Moraes vem demonstrando; chega a referenciar um intelectual de esquerda não-identificado, que comenta que pessoas com viés autoritário devem ser temidas, ainda que estejam temporariamente atuando contra nossos adversários políticos. “Quando a roda girar”, esse esquerdista, aparentemente tão lúcido quanto possível para um esquerdista, arrematou dizendo, “eu poderia ser mandado para a cadeia”.


Então, caro leitor, não apenas Lula e Xi Jingping, mas, nestes tempos em que se vira tudo ao avesso, Alexandre de Moraes também é campeão do liberalismo contemporâneo. As atitudes repressivas de liberdades individuais e concentradoras de poder que ele vem personificando dentro do Supremo Tribunal Federal contrariam, é evidente, todas as orientações que nos foram legadas por John Locke, Montesquieu, Tocqueville e tantos outros nomes de destaque da tradição clássica do pensamento liberal. O intelectual esquerdista que se manifestou ao final da reportagem da O economista entendeu o valor da instituição mais importante defendida por esses autores: o Estado de Direito, em que as regras impessoais devem prevalecer sobre a vontade arbitrária de um ou de onze homens.
No entanto, uma outra verdade transparece das duas matérias que sintetizamos. À revelia do que as simplificações retóricas possam reverberar, Alexandre de Moraes não é mesmo, pessoalmente, um homem “de esquerda” — apesar de muitos de seus pares no STF serem ligados diretamente ao lulopetismo, que os colocou onde estão. Ele é um homem de uma corporação, como o eram os militares que conduziam as mobilizações intervencionistas do passado imediatamente pós-tenentista do Brasil. As ofensas à corporação são entendidas por ele como atentados à democracia a exigir constante enfrentamento. Com isso, juízes se convertem em cruzados de espada em punho e, sob o pretexto de uma interminável necessidade de emergência, deixam de cuidar do único alicerce em que se deveriam apoiar: a lei.