É necessário entender um pouco de filosofia e história das ideias para identificar as crises profundas que estamos passando no Ocidente. Sem um fundamento intelectual mais robusto, apenas nadamos de braçadas no eterno achismo com base no que lemos e assistimos na internet e com pompa de autoridade. Por isso, hoje venho falar do problema central do Ocidente pós-moderno. Todos nós, querendo você ou não, somos filhos das ideias liberais. Nós carregamos suas proposições arraigadas em nosso DNA social; e, quando digo aqui “liberais”, estou me referindo às ideias de liberdade que nascem entre meados da era renascentista e início da era iluminista. Ou seja, falo “liberal” no sentido amplo e histórico, tanto o “liberal” de constituição mais conservadora — de raízes britânicas, em especial —, quanto o “liberal” cultural — de raízes francesas. Para um aprofundamento sobre conceitos e diferenciações, indico fortemente o ótimo livro da historiadora norte-americana Gertrude Himmelfarb: Os Caminhos Para Modernidade.
Todavia, nesse processo de conhecimento genealógico de nossos princípios, geralmente nos esquecemos de nossos avós: a escolástica medieval, e destaco aqui, é claro, Santo Tomás de Aquino e suas obras, bem como a esquecida Escola de Salamanca e suas defesas do Direito Natural; há ainda os nossos bisavós: a filosofia grega, teologia cristã e ordenamento jurídico-social romano. E quando rastreamos tais ideias e localizamos suas influências em nossa sociedade, percebemos que um dos grandes trunfos do Ocidente foi ter gerado uma espécie de “coesão ética” transformada em senso comum.
O que seria isso? Era o que os filósofos até pouco tempo chamavam de “ética universal”; isto é, a constatação de que, em especial no Ocidente, em razão da mescla das ideias advindas da Grécia, de Jerusalém e de Roma, criou-se uma mentalidade consensual geral, uma ética comum sobre assuntos elevados, tais como honra, dignidade, sacralidade, justiça etc. Tal ética acabaria por abastecer e fundamentar as visões e expressões comunitárias como um todo. Sua origem é até hoje matéria de debate. Alguns advogam pela teleologia, isto é, uma espécie de sabedoria divina que observamos racionalmente pelas coisas criadas; uma versão mais secular, acredita que a origem desse Direito Natural, ou ética universal, se dá pelo acúmulo de conhecimento e de experiências humanas vertidas em senso comum cotidiano. Seja como for, tratamos da mesma “ordem ética”.
Falando assim, fica até bonito, né? Parece até que a Idade Média foi gestada numa paz utópica, sob cânticos gregorianos infindáveis enquanto anjinhos nus dançavam ao nosso redor. Claro que não. Como todo processo histórico evidencia, cada era carrega sua porção — ora maior, ora menor — de catástrofe, crimes brutais e bisonhices políticas. Mas assim como as bisonhices dos dias atuais são reais, os avanços e acertos também são, e jogar fora a água suja com o bebê nunca foi algo razoável para pessoas minimamente equilibradas.
A ética universal, ou Direito Natural, era o próprio princípio organizador da sociedade para os escolásticos; sem uma coesão mínima de ideias e princípios, qualquer sociedade estaria fadada ao colapso. E isso não é um conceito meramente medieval. Por que democracias liberais não aceitam terroristas em seus territórios? Porque há um mínimo de senso comum jurídico e filosófico de que tais pessoas encarnam uma agressão injustificável e um risco óbvio a ser neutralizado na sociedade. Por mais plural que um país possa se vender — vide Canadá e França —, deve existir um terreno de direitos e deveres comuns a serem respeitados.

E, assim sendo, para o Ocidente, era comum a percepção de que a ordem moral precede a liberdade, e isso porque, sem o mínimo de arrumação social e cultural, a própria liberdade pairaria como um direito sem prática. A liberdade para um terrorista praticar o terrorismo é, em si mesmo, uma antiliberdade, e é por isso que deve existir um parâmetro ético e jurídico comum para que a ação livre possa ser compreendida, e não manipulada. Por isso, a crença num liberalismo sem instituições, costumes, tradições e leis que possibilitem a existência e prática da liberdade individual não passa de um fetiche juvenil, nada além disso. Sem ter chão onde pisar, o ato de correr se torna uma paranoia digna de hospício. Como dizia o saudoso britânico Roger Scruton, em Conservadorismo: Um Convite à Grande Tradição: “As leis liberais são o triunfo da ordem política, mas somente quando as pessoas possuem o conhecimento social necessário para compreendê-las e obedecê-las.”
No Brasil atual, não padecemos exclusivamente da perda gradual das liberdades, como vem sendo gritado por opinadores, mas sofremos, antes, a ausência cada vez mais acentuada daquela consciência ética universal, dos valores comuns garantidos que norteiam o Ocidente e fazem dele um lugar de prosperidade, liberdade e respeito às dignidades básicas. A sociedade — isto é, os indivíduos em sua expressão manifesta — ao perder tal coesão ética se torna tolificada por discursos ideológicos; as instituições, que deveriam encarnar tais princípios, como o da justiça isenta e da moralidade pública, passam a ser corroídas sem oposição pela imoralidade de seus agentes. O Brasil só perde agora a liberdade porque antes perdeu seu arrimo moral; só padece de tiranias como a do STF, pois suas instituições trocaram a ordem ética por favores e ideologias de ocasião.
Essa ordem, fundamentada em um respeito heroico aos indivíduos e no controle primário do Leviatã — o Estado —, foi o que fez o Ocidente grande. Mas essa grandeza política está sendo solapada e cuspida. Somente aqui, no Ocidente livre um muçulmano e um judeu podem sentar-se à mesa de um bar e, discordando praticamente sobre tudo, tomar uma cerveja juntos e apertar as mãos ao final da conversa.
Costumava ser somente aqui, também, o local onde podíamos ir às praças públicas denunciar autoritários em postos de Estado sem sermos presos por isso.
Quando se prega uma liberdade sem ordem, criamos o absurdo de um sistema onde é permitido até mesmo censurar e perseguir opositores em nome da democracia e da liberdade individual. Aliás, sem o mínimo de ética comum, a própria democracia esvazia-se, virando arma de ocasião nas mãos de ditadores.
O sentido de ordem que trago aqui é o avesso da ordem estatal, pois a ordem estatal, na verdade, é apenas controle e centralização, enquanto a ordem ética histórica se faz pela tomada de consciência e expansão da autonomia do indivíduo. Os fracos expandem seus domínios por meio do controle, da mordaça, do cadafalso, e isso só ocorre porque os justos se encontram com medo ou calados por mera conveniência. A justaposição entre fracos com poder e justos entorpecidos faz a receita para qualquer ditadura nascente.
As instituições de Estado brasileiras estão em frangalhos, sob forte maquiagem de democracia, a fim de esconderem as metástases que carregam internamente e, a reboque, estão drenando as liberdades dos indivíduos. E, assim, a única saída é o retorno determinado aos tais princípios fundantes e à oposição firme e aguerrida contra os ditadores, pois — ia me esquecendo de dizer — outra característica ocidental, fundamento genético de sua existência, é exposição dos tiranos sob o sol seguida de punições severas. A filosofia ocidental havia criado uma barreira natural contra tiranos, e devemos reativá-la, independentemente de credo religioso e político; ditadores nós destituímos e prendemos. Eis um credo comum que devemos resgatar junto com a ordem ética que esquecemos.
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