A ação ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP) para pedir a intervenção por um possível “desvio de finalidade” na Fundação João Paulo II, mantenedora da Comunidade Canção Nova, tem gerado preocupações no meio cristão, especialmente entre os espectadores da TV que se consolidou como uma das maiores emissoras de TV católicas do Brasil, e para os defensores dos direitos de informação e liberdade religiosa de um modo geral.
Nela, a promotora responsável pediu o afastamento de vários integrantes do conselho deliberativo da Fundação João Paulo II que também são membros da Comunidade Canção Nova e acusou a ingerência de interesses da comunidade em decisões relativas a casos de assédio moral que vinham sendo apurados pela fundação. O MP-SP também apontou para a existência de uma confusão administrativa e patrimonial entre as duas entidades, desconsiderando a finalidade comum para a qual ambas foram criadas, e reclamou uma gestão mais autônoma para a fundação, separada de seus fins de cunho mais social, além de solicitar a nomeação de um interventor.
Padres da Canção Nova foram a público nas redes sociais para esclarecer pontos relativos à ação judicial que se baseou num inquérito civil que reuniu documentos e oitivas de integrantes das duas entidades para sustentar a petição. No último dia 4, porém, o juiz Gabriel Gonzalez negou, em liminar, os pedidos do Ministério Público, reconhecendo a natureza confessional e o caráter originalmente simbiótico entre as duas entidades. O MP declarou, contudo, a intenção de recorrer.
Seria possível que tal processo levasse a TV Canção Nova a sair do ar? Existem precedentes? Quais deverão ser os desdobramentos do caso daqui pra frente?
Procurador do MPF tentou anular concessão de TVs católicas em 2011, mas não conseguiu
Em 2011, o procurador Adjame Oliveira, do Ministério Público Federal (MPF), chegou de fato a pedir à Justiça a anulação das concessões das emissoras católicas Canção Nova e TV Aparecida. De acordo com ele, as outorgas concedidas às TV’s católicas a título de emissoras de caráter educacional foram feitas de forma irregular porque ambas não passaram por qualquer licitação para “selecionar a entidade que apresentasse o melhor projeto educacional”.
O colunista da Revista Veja Reinaldo Azevedo chegou a sugerir, na época, motivações político-partidárias por trás da ação do MPF, relacionadas a declarações de um padre da Canção Nova que, em rede nacional, desestimulou o voto dos fiéis no Partido dos Trabalhadores ( PT), gerando um pedido de resposta do partido, e ao encerramento de um programa televisivo do então presidente estadual do partido, Edinho Silva, naquela mesma emissora. Tais suspeitas nunca se confirmaram, mas a ação do MPF para tirar as duas emissoras religiosas do ar tampouco foi adiante.
No caso presente, a suspensão da TV Canção Nova também parece, de acordo com os especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, algo bastante improvável. Mas não há nada definido até a sentença em julgado.
Segundo o advogado Leandro Monteiro, que tem acompanhado e analisado o processo, essa disputa, agora, “tende a esfriar”. Para ele, “a decisão liminar, em muitos processos, e entendo que este é o caso, acaba sendo como que um grande ‘spoiler’ da sentença. A maioria dos pedidos do MP não dependem de grandes produções de prova, mas unicamente de interpretação do direito. Nesse sentido, na decisão liminar, o magistrado demonstrou grandes divergências de interpretação do direito com o MP”.
Questionado sobre a possibilidade de a TV Canção Nova sofrer uma pesada intervenção, via fundação mantenedora, a ponto de ser “laicizada”, perder suas características católicas ou mesmo de sair do ar, Monteiro afirmou que “o processo ainda vai tramitar regularmente”, mas entende ser “altamente improvável que isso ocorra”, dadas as vitórias que a Canção Nova já obteve na primeira instância.
“O magistrado rechaçou a primeira tese do MP, pois acolheu o entendimento de que a decisão da Fundação de suspender decisão de afastamento dos membros investigados apenas se deu para que pudesse possibilitar a ampla defesa e contraditório deles e assim evitar processos trabalhistas contra a Fundação”, afirma.
“O magistrado também rechaçou a segunda tese interpretando que há uma cooperação estatuária entre a Fundação e a Canção Nova, inclusive financeira. Ademais, afirmou que todos os aditamentos contratuais entre ambas, para modificar a porcentagem dos royalties que seriam repassados à CN, foram supervisionados pelo MP. Esses argumentos, por ora, quebram, no direito, os principais fundamentos da tese do MP.”
Perfil de juízes pode determinar desfecho
Por outro lado, o indeferimento da petição do MP pelo juiz de primeira instância ainda pode ser cassado numa instância superior, lembra o professor de Filosofia do Direito André Gonçalves Fernandes: “Isso, aliás, não me estranharia nem um pouco, dependendo dos valores sociais e pessoais do desembargador em cuja mesa vier a cair esse processo”. Segundo o professor, o perfil dos juízes nas outras instâncias pode ser determinante no desfecho de um caso como esse, o que revela o quanto o sistema jurídico atual deixa margem para decisões de caráter subjetivo, a despeito das definições legais.
Ainda assim, a advogada Silvana Neckel, diretora institucional do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), acredita que “a ação promovida pelo Ministério Público de São Paulo não acarretará consequências para a Canção Nova, visto que a Fundação João Paulo II foi instituída com o propósito de atuar de maneira colaborativa com a Comunidade Canção Nova na propagação de suas finalidades, pelos meios de comunicação, eventos e divulgação de seu acervo imaterial”.
Ela também faz notar, a partir das definições estatutárias, que “no artigo 11 do estatuto da Fundação foi estabelecido um vínculo securitário entre as instituições referidas, o que possibilita o apoio financeiro e a celebração de negócios jurídicos, com o objetivo comum de preservar a vontade dos fundadores”, e que, além disso, “o artigo 31 do estatuto estabelece que os membros do Conselho Deliberativo da Fundação serão eleitos a partir dos nomes indicados pela Comunidade Canção Nova”, o que não deixaria margem legal para uma sentença favorável à petição do Ministério Público numa instância superior.
Antes da decisão final em primeira instância, o juiz Gabriel Gonzalez determinou a realização de uma audiência de conciliação a ser feita no dia 25 de março entre o Ministério Público de São Paulo e os membros do conselho deliberativo da Fundação João Paulo II. Oficialmente, independentemente do resultado dessa audiência, o MP-SP já manifestou a intenção de recorrer. Se não houver consenso entre as partes, o processo ainda pode se arrastar ao longo do ano e ter um desfecho apenas em instâncias superiores.