O Estado brasileiro vem enfrentando, nos tempos que correm, uma das mais sérias crises de sua história e o cenário que se descortina parece ser um tanto desolador e sombrio. Há cerca de seis anos, a sociedade brasileira vem testemunhando uma deterioração progressiva de suas instituições, que se expressa fundamentalmente na violação dos direitos fundamentais da pessoa humana, em suas mais variadas manifestações, e no desrespeito flagrante ao equilíbrio constitucional dos Três Poderes, levando ao enfraquecimento e quase desaparecimento do Estado de Direito.
Relevante notar, desde logo, que a preocupação aqui externada diz respeito exclusivamente ao Estado de Direito e não ao que se convencionou chamar de “Estado Democrático de Direito”, uma expressão largamente utilizada e igualmente desgastada, a qual frequentemente está associada a um entendimento subjetivo e particular de “democracia”, criado por todos aqueles que, paradoxalmente, são responsáveis por ações que se revelam, antes de tudo, antidemocráticas e atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais do indivíduo.
A questão que se coloca é se nós, cidadãos brasileiros, estamos irremediavelmente condenados a viver sob um direito fictício, cujas normas não se originam de um processo legislativo regular, criado pela Constituição Federal
O conceito de democracia, do ponto de vista das autoridades públicas, nada tem a ver com as formulações primevas dos filósofos gregos, tampouco com as grandes conquistas da cultura liberal ocidental ao longo dos séculos, aproximando-se, ao contrário, muito mais de uma visão reducionista e compartimentada da realidade, que convém perfeitamente ao establishment.
Entretanto, o que importa, efetivamente, é considerar o Estado sendo regido por um ordenamento jurídico, que compreende uma Constituição e um conjunto de leis infraconstitucionais, um Estado que estabeleça deveres aos cidadãos, mas, por outro lado, que lhes assegure o pleno exercício dos direitos e garantias fundamentais, consoante prescreve o art. 5º da Constituição do Brasil. Este, sim, é o verdadeiro sentido da expressão “Estado de Direito”, um Estado ao qual também as autoridades públicas, de todos os Três Poderes, devem estrita obediência à Constituição e às leis do país.
Como profissional do direito há quarenta anos, dos quais mais de duas décadas dedicadas ao exercício do cargo de procurador federal, custa-me crer que no atual estágio evolutivo de nossas instituições jurídicas e políticas, tenhamos chegado a uma quadra de tamanhas incertezas e inseguranças no que diz respeito à aplicação do Direito e ao devido cumprimento de suas normas pela mais alta corte do país.
Com base no entendimento de um único ministro do STF que, convém frisar, conta com o beneplácito de seus pares, dispositivos da Carta Magna, notadamente o art. 5º, que trata dos direitos e garantias fundamentais, bem como normas de Processo Penal, são frequentemente ignorados, dando lugar a decisões arbitrárias e injustas, sem qualquer respaldo constitucional e legal, em clara afronta ao devido processo legal, à dignidade e aos direitos da pessoa humana.
O Inquérito 4781, mais conhecido como “Inquérito das Fake News”, considerado, à época de sua instauração, inconstitucional pela então Procuradoria-Geral da República, vem impondo severas restrições a jornalistas, influenciadores digitais, parlamentares e outros, impedindo a essas categorias a livre manifestação do pensamento e de opinião e, com isso, cerceando o princípio constitucional da liberdade de expressão.
Do mesmo modo, há que se considerar o episódio do 8 de janeiro e a tese fantasiosa propalada pelo STF e encampada pelas autoridades governamentais de que tal evento teria configurado um golpe de Estado. Neste caso, o tacão da Suprema Corte se fez sentir de modo irresistível por meio das decisões de seu poderoso ministro, que julgou e condenou, indistintamente, um grande contingente de pessoas, impondo a elas penas exorbitantes, embora nem sequer tivesse havido a individualização das condutas e também não se tivesse observado o princípio do devido processo legal.
Tal situação evidencia uma abominável agressão aos direitos da pessoa humana. Pois bem, diante desse quadro tenebroso, em que se assiste à progressiva supressão de direitos e liberdades fundamentais e ao desmoronamento do Estado de Direito, a questão que se coloca é se nós, cidadãos brasileiros, estamos irremediavelmente condenados a viver sob um direito fictício, cujas normas não se originam de um processo legislativo regular, criado pela Constituição Federal.
Ouso dizer que a se considerar uma ação efetiva por parte do próprio ordenamento jurídico brasileiro, a solução poderá chegar tardiamente, o que não significa que tenhamos de perder a esperança. E aqui o direito internacional passa a adquirir relevo. O tema da proteção dos direitos humanos deixou de ser uma preocupação dos ordenamentos jurídicos dos Estados, adquirindo contornos universais, por força da Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos tratados concluídos posteriormente.
Cada vez mais ganha corpo e difunde-se no meio internacional a concepção de que a afirmação e proteção da dignidade e dos direitos humanos constitui matéria de ordem pública internacional, colocando-se em posição de superioridade em relação à soberania dos Estados, de sorte que havendo violação de direitos humanos, por parte das autoridades do Estado, a soberania cede passo para que atue a entidade internacional, daí a importância das cortes regionais de direitos humanos.
No caso do Brasil, há uma série de denúncias protocoladas na Corte Interamericana de Direitos Humanos, por violações de dispositivos da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).Uma vez que a soberania do Estado brasileiro é exercida, conjuntamente, pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário,é perfeitamente admissível, portanto, a apreciação e eventual condenação, pela referida corte, de todo e qualquer ato que ofenda a dignidade e os direitos humanos, provenha ele, indistintamente, de qualquer dos Poderes da República.
Embora até hoje ainda não tenha havido pronunciamento conclusivo por parte do referido tribunal acerca das denúncias que lhe foram dirigidas e que têm por objeto as decisões proferidas por ministro do STF, ainda nos resta a esperança de que, seja pela atuação do próprio ordenamento jurídico brasileiro, seja pela atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, possamos retornar ao primado absoluto da norma jurídica e a um autêntico Estado de Direito.
Afonso Grisi Neto é mestre em Direito pela USP, doutor em Ciências Sociais pela PUC e procurador federal aposentado.