O caso recente da tentativa de intervenção do Ministério Público de São Paulo na Fundação João Paulo II, mantenedora da TV Canção Nova, despertou em muitos – mesmo não católicos – o interesse sobre essa comunidade religiosa, suas atividades e o papel dos seus meios de comunicação na formação da cultura e da opinião pública brasileira. Afinal, como ela surgiu, qual é a sua missão e como é sua relação com a hierarquia da Igreja Católica?
Origens da comunidade e da TV
Fundada como uma “comunidade de vida” em 1978, na cidade de Cachoeira Paulista/SP, a Comunidade Canção Nova nasceu da iniciativa do Padre Jonas Abib, um sacerdote salesiano, auxiliado por um casal de leigos: Luzia Santiago e Wellington Jardim. Em 1980, fundaram a Rádio Canção Nova. Em 1982, como resposta à aspiração dos membros da comunidade para expandir o trabalho de evangelização através das mídias, foi instituída a mantenedora do Sistema Canção Nova de Comunicação: a Fundação João Paulo II.
Deste modo, em 15 de outubro de 1989 a CN iniciou suas transmissões televisivas e, ao longo dos anos, foi se consolidando como a maior emissora de TV católica do país, com uma programação quase que exclusivamente religiosa e mantendo-se com a colaboração financeira regular de fiéis de todo o Brasil. Hoje, a TV Canção Nova já celebra os seus 35 anos.
Pregador incansável do chamado à salvação em Cristo e da santidade de vida como urgência para todo cristão, Padre Jonas deixava nas mãos da Providência os frutos da sua obra
Ele dizia: “O carisma Canção Nova é como uma pedra lançada no rio, ninguém sabe onde as ondas vão chegar.”
Nesse espírito, a comunidade lançou iniciativas como o acampamento PHN, “Por Hoje Não” (vou mais pecar), evento que inclui Missas, shows, oportunidades para se confessar com um padre e pregações que desafiam os jovens a deixar o pecado e as ilusões do mundo, e a construir uma vida em comunhão com Deus, buscando a santidade no dia a dia. As atrações principais do evento são transmitidas pela TV para todo o Brasil.
Por várias vezes, o canal do Padre Jonas superou a audiência da própria TV Globo.
O programa Repórter Canção Novaapresentado às noites de domingo, que já marcou 28, 1 pontos de audiência, chegou por vezes desbancar o Fantásticoconhecida atração de diversificado da gigante emissora carioca.
O reconhecimento papal da comunidade como Associação Internacional Privada de Fiéis permitiu-lhe facilitar a expansão para territórios além do seu berço na diocese de Lorena/SP. Os estatutos foram aprovados pela Santa Sé em 2008, durante o pontificado do Papa Bento XVI.
Alcance e diversidade das frentes de missão
Hoje, a CN tem frentes de missão em mais de 20 cidades brasileiras e está presente em 7 países no total: Paraguai, França, Portugal, Itália, Moçambique, Israel e Brasil. Emissoras de rádio e TV ligadas à comunidade também operam no exterior.
Os eventos maiores, porém, seguem concentrados na sede de Cachoeira Paulista, que chegou a receber 2 milhões de visitantes em 2023. A sede da comunidade possui aproximadamente 372.000m², repartidos em áreas para diversos fins de apostolado. Missas e pregações de religiosos célebres como Padre Marcelo Rossi ou Frei Gilson costumam lotar o espaço conhecido como “rincão”, um auditório com capacidade para 70 mil pessoas.
Na dimensão educativa e sociocaritativa, a comunidade mantém projetos como o Centro de Atendimento Comunitário, o Centro Médico Padre Pio, a Casa do Bom Samaritano e a Cia. de Artes e Esporte, além de oferecer bolsas a crianças em situação de vulnerabilidade social que queiram estudar no Instituto Canção Nova, uma escola de ensino fundamental ligada à comunidade. Uma faculdade com cinco cursos de graduação disponíveis também compõe o polo educacional da Canção Nova.
A TV ainda veicula, além da programação estritamente religiosa, programas de entrevistas, noticiários, educativos e de formação apologética, que é a defesa da Fé a partir de argumentos racionais.
Nesta última categoria, o programa Escola da Fé merece, sem dúvida, um destaque. Apresentado pelo Prof. Dr. Felipe Aquino, professor universitário que explica pontos teológicos, históricos e até mesmo científicos à luz do ensinamento da Igreja, o Escola da Fé está no ar há 20 anos (desde 2005) e já ajudou a qualificar e aprimorar os conhecimentos de muitos brasileiros nas questões doutrinais do catolicismo e seus temas correlatos.
Em 2012, o Prof. Aquino – que é também autor de 78 livros, a maioria deles de formação católica – recebeu uma honraria do Vaticano como reconhecimento por seu apostolado: a comenda de Cavaleiro da Ordem Equestre de São Gregório Magno. Viúvo, pai de cinco filhos e com mais de 70 anos, o professor segue apresentando pessoalmente o programa Escola da Fé na Canção Nova todas as quintas-feiras às 21 horas.
Contexto eclesial e o legado de Monsenhor Jonas
Ligada à Renovação Carismática Católica (RCC), a Canção Nova cresceu como uma alternativa mais espiritual, dentro da Igreja Católica, aos anos de hegemonia da Teologia da Libertação (TL), uma vertente de reinterpretação da Bíblia com matizes socialistas que floresceu sobretudo entre o clero nos anos 70 e 80, e buscou se expandir através de movimentos leigos, como as Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), a Pastoral Operária (PO), a Pastoral da Juventude (PJ) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Apoiados por uma parte influente do episcopado, os movimentos da chamada “esquerda católica” se tornaram largamente representativos do catolicismo brasileiro nas décadas finais do século XX.
A própria chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) e de Lula ao poder é atribuída, em grande medida, ao discurso pregado pelas chamadas “pastorais sociais” e seus porta-vozes do clero em favor de reformas sociais estruturais. Essa hegemonia, contudo, não chegaria ilesa ao século XXI.
Enquanto os grupos da TL faziam uma interpretação “histórico-crítica” do Evangelho e formavam uma militância baseada mais em reivindicações sociopolíticas do que nas realidades divinas e espirituais, a RCC e suas mídias continuaram falando do Espírito Santo, da luta contra o pecado, das promessas sobrenaturais de Jesus, da necessidade de conversão interior, da importância da oração, de anjos e demônios, do valor dos sacramentos, enfim, de tudo o que sempre assinalou o ensinamento católico ao longo dos séculos.
Com uma inspiração no neopentecostalismo norte-americano (pois nascida num grupo de oração da Universidade de Duquesne, EUA, em 1967), a RCC acabou se revelando um movimento capaz de preservar práticas da devoção católica tradicional e conter a debandada de fiéis que afetava dioceses do mundo inteiro na esteira da secularização causada pelo enfoque “teológico” materialista e pela politização da Igreja.
O reconhecimento de Roma pelo trabalho da Canção Nova veio em 2007, quando o Papa Bento XVI concedeu ao Pe. Jonas Abib o título de Monsenhor – dado a padres que se destacam por “relevantes serviços prestados à Igreja e ao povo de Deus” em suas dioceses.
No mesmo ano, o Patriarcado Maronita (uma vertente oriental libanesa da Igreja Católica) também concedeu a Mons. Jonas o título honorário de “Corepíscopo”, próprio do rito maronita.
Falecido em 2022, Monsenhor Jonas Abib recebeu homenagens não apenas de integrantes da Igreja Católica, mas também de representantes do poder civil, como os governadores dos Estados de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e de Minas Gerais, Romeu Zema, que enalteceram o “legado” e o “exemplo de fé e amor ao próximo” deixados pelo monsenhor.
Sem dúvida, podemos estar certos de que o Brasil seria consideravelmente menos cristão – e até menos crítico em relação a certas ideologias políticas – se a Canção Nova não tivesse surgido naqueles fins dos anos 70 para evangelizar através dos meios de comunicação e se tornar a potência midiática que é hoje.
*Luiz de Moraes é jornalista, mestre em filosofia política, professor e catequista de jovens e adultos.