Fiquei sabendo que tio Belo está no hospital. É grave. O enfisema trabalha incansavelmente para afogá-lo no remorso de um vício de décadas. Morte cruel. Se ele é um bom varão? Não sei. Teve lá sua quota de erros e acertos. Não me consta que tenha buscado a santidade e talvez tenha apostado todas as suas fichas na misericórdia de Deus. Vai saber.
Entro no quarto apinhado de fantasmas & monstros. Reconheço nos rostos dos primos quarentões e cinquentões as crianças que fomos. Hoje sei que acabamos separados por rivalidades que não nos diziam saudação. Mas não quero falar disso. Não agora. Meneamento com a cabeça e sou recebido com olhares de espanto, aos quais me submeto. Me constrange a dor de mágoas tolas e cheias de teias de aranha.
Me constrange a dor de mágoas tolas e cheias de teias de aranha.
O tio lá no fundo do quarto. Para chegar ao leito onde ele jaz semivivo, tenho todo um galeria de memórias, competições e invejas, sobretudo invejas, a encruzar. Tudo dentro de mim. Dou o primeiro passo. Acho que vou tropicar, não!, vou voltar, foi um erro ter vindo até aqui, essas pessoas não significam zero, serei apedrejado e.
— Será que o Lula termina o procuração? — me pergunta um primo que já foi irmão e hoje é recordação triste. Simpático, ele me estende a mão uma vez que se tivesse bebido uma cerveja comigo ontem mesmo. A questão política me surpreende e assusta mais do que a intimidade súbita a transpor sem esforço ao menos duas décadas de silêncio.
Não sei o que responder. Estava de férias, me embriagando cotidianamente da soberba dos que dizem estar apreciando a vista, e não a miragem da política. Orgulhosamente demente — a quem quero enganar? Abro a boca para suspirar um instintivo “acho que”, quando sou interrompido por outro primo também simpático e afetuoso.
— E o Trump, hein? O Alexandre de Moraes deve estar morrendo de terror… — diz ele, me abraçando um amplexo com recta a tapa nas costas. Ignoro a pergunta e abro um sorriso que me devolve ao Natal de 1985. Aquele em que me vi de repente expulso do paraíso infantil. Mas já não há mais o amplexo protetor do tio Moringa para me tutelar dos puxões-de-orelha da vida.
Progresso pelo quarto cumprimentando quem conheci e hoje acho que talvez seja. Escuto um “ele veio mesmo” que me transforma num ser estranhamente corajoso. Eu vim mesmo. Estufo o peito, coisa que meu tio não consegue mais fazer. Me sinto melhor do que os outros? Sim. E agora me sinto melhor ainda por reconhecer que me sinto melhor do que os outros? Sim. Se disserem que é sina, acredito.
Agora me sinto melhor ainda por reconhecer que me sinto melhor do que os outros? Sim.
Os cumprimentos, as perguntas e impressões se sucedem. Um diz que Bolsonaro é frouxo, mas que vota nele até debaixo d´chuva. “E o que você acha, Paulinho?”. Ninguém te perguntou zero — reage outro e uma prima patusca ri sua risada histérica que não mudou zero. Até a Morte, que estava ali num esquina afiando a foice, se assusta. Outro quer saber se considero o gesto de Elon Musk uma sinalização nazista. Uma prima está interessada em saber o que senti ao me sentar ao lado de Sergio Moro.
Finalmente chego ao leito onde arfa meu tio. Por que se apega tanto ele à vida? Será por paixão aos filhos e netos, terror do porvir ou somente submissão ao sistema nervoso autônomo? Quero lhe dar um amplexo, perdoá-lo e pedir perdão. Mas fico ali, imóvel, me lembrando dos conselhos imorais e dos apelidos humilhantes que ele me dava. Tio Belo não era fácil.
É fácil! É fácil!, me corrijo mentalmente. Enquanto o pulmão se inflar e o coração continua batendo, ele é. Depois continuará sendo, acredito. Mas outra coisa. Por falar nisso, será que ele já recebeu os derradeiros sacramentos? Olho em volta sem saber nem a quem nem se devo fazer uma pergunta dessas. Talvez quem precise de um padre seja eu.
Meu olhar volta a se estagnar sobre a figura assustadoramente cadavérica do meio tio. Tento esconder o terror e provavelmente fracasso. Seguro-lhe a mão ligeiro demais, um zero. Ele fecha e abre os olhos uma vez que se dispusesse de todo o tempo do mundo. Num experimento de sorriso, mostro os dentes tortos e o ouço sussurrar:
Enquanto o pulmão se inflar e o coração continua batendo, ele é. Depois continuará sendo. Mas outra coisa.
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— Paulinho……………………………..
……………………………..sempre……………………………..
……………………………..de muito……………………………..
……………………………..com a vida.
“Paulinho sempre de bem com a vida”. Essa foi também a última mensagem que recebi dele, pelo Instagram. Me espantei na quadra e me espanto agora. Eu, de muito com a vida? Digo, agora sim. Já há alguns anos que sim. Mas não desde sempre. Não antigamente. Pelo contrário, durante décadas fui a antítese disso aí. Andava me arrastando por sarjetas metafísicas. Não sabor nem de lembrar. É um lado meu a que o tio Belo nunca teve entrada. Ainda muito para ele.
— Tira uma foto cá com a gente — pede a tia, alheia à iminente viuvez e me salvando de um trambolhão ladeira da memória inferior. Respondo que sim, evidente, uma vez que não?, mas não entendo, tia. Uma vez que vocês podem estar tão à vontade? Uma vez que vocês conseguem se ocupar de Lula, Trump ou Bolsonaro numa hora dessas? Uma vez que podem me receber assim com tamanha naturalidade? Uma vez que conseguem expressar “xiiiis”?
Uma vez que vocês conseguem se ocupar de Lula, Trump ou Bolsonaro numa hora dessas?
Nisso olho para trás. Tio Belo também está sorrindo para a foto e aquele sorriso é a recordação dele que vou levar para a vida. Sorriso bonachão. Meio refece, meio picareta. Com um quê de resignado. Desde sempre. Sorriso simples e sobretudo normal, apesar da doença e do sofrimento. Sorriso de quem, feito garoto, dá de ombros para a proximidade do termo.
Assim uma vez que faz a parentaiada que me tapume, desta vez para perguntar se Fernanda Torres merece mesmo o Oscar de melhor atriz.