É provável a convívio fraterna e pacífica frente à inconstância de valores comuns, éticos, morais e culturais que se expressam no mundo atual? Estaria se configurando a comprovação da tese de Samuel Huntington de que os conflitos mundiais pós-guerra fria seriam caracterizados por “choques entre civilizações”? Quando propomos relações dialógicas e colaborativas para o tratamento de conflitos, não descuidamos do indumentária de que estas interações somente se dão efetivamente se forem “cultivados” (uma das expressões que definem a vocábulo cultura etimologicamente) valores nas mentes e corações humanos que se harmonizem com a finalidade de convívio da humanidade (e da pluralidade) de maneira fraterna e pacífica. E que levante cultivo, na atualidade, ainda se dá por meio de processos educativos e de formação de crianças e adultos.
A escolha do tema do diálogo inter-religioso para esta reflexão que propomos surge da perspectiva de que a dimensão religiosa tem sido referida, neste último século, porquê relevante manancial de conflitos entre Estados, comunidades e indivíduos. É importante ressaltar, inicialmente, que a Igreja Católica, principalmente a partir do Concílio Vaticano II, realizado de 1962 a 1965,na Cidade do Vaticano, buscando uma reflexão mais ampla sobre as suas relações com o mundo, apresenta diversos documentos sobre o diálogo inter-religioso, enquanto proposta de interação com as Igrejas não cristãs.
O diálogo inter-religioso não é, em núcleo, uma partilha de dogmas e conhecimentos para o desenvolvimento das religiões, mas tem porquê objetivo principal a valorização da vida humana e não humana, sua interdependência e a promoção dos meios materiais e imateriais para o pleno desenvolvimento
Em sua concepção etimológica, a sentença diálogo se refere a um processo de notícia entre pessoas diversas que interagem entre si numa perspectiva de reverência, desvelo e responsabilidade com o outro. Assim, não há diálogo quando não está presente o princípio da igual consideração do outro. Se alguém, mesmo uma instituição, se coloca em posição de superioridade (dominus da verdade), não se trata de relação dialógica, mas de dominação, ou, no mínimo, de menosprezo pela verdade do outro.
Da mesma forma que dialogar não se refere exclusivamente ao ato de falar, mas essencialmente de ouvir com atenção, com presença integral do ser. Pode-se inclusive declarar que dialogar é um ato de paixão, quando presentes seus pressupostos fundamentais: reverência, desvelo, responsabilidade, escuta e atenção. Não seriam estas as características de um paixão verídico? Segundo o evangelista Paulo, em sua primeira epístola à comunidade de Corinto (capítulo 13), o paixão é bondoso, nunca interesseiro e não se satisfaz com a injustiça.
aqui lembramos as facetas das várias espécies de paixão – segundo os gregos – para entendermos a que tipo o diálogo, enquanto ato de paixão, está associado. Não ao eros, que é o paixão puramente individualista, no qual o outro é mero instrumento para os próprios objetivos; nem ao paixão filia, que se dá exclusivamente entre iguais. Por término, outra sentença grega para paixão é ágape, a que melhor se adequa ao ato de dialogar, paixão incondicional ao outro pelo muito do outro, pelo outro em si mesmo. Desse modo, um diálogo entusiasmado pelo espírito de ágape procura primeiramente o melhor para o outro, o que pode realmente contribuir para o bem-estar, bem-viver, uma vida digna e tantos outros valores que permeiam os anseios de uma vida feliz.
Aquele que dialoga movido pelo ágape está realmente presente ao momento em que está diante do outro, atilado às necessidades do outro e considerando-o porquê mais importante do que a si próprio. O paixão, agora devidamente qualificado, é um valor presente em todas as grandes (e pequenas) expressões religiosas, que aportam invariavelmente as dimensões salvífica e humanizadora, isto é, enquanto reconhece a incompletude humana e sua requisito interesseiro e sofredora, cuja salvação se daria, a grosso modo, pela metanoia – transformação de pensamento e atitude, a partir de um referencial humano/divino proposto por cada religião.
Desta transformação, nasce um varão novo, já cá, neste mundo restringido temporal e espacialmente que, segundo Pierre Bourdieu, em Contrafogos, um varão com um novo olhar para a vida. Considerando uma hermenêutica diatópica, de contrato com a proposta de Boaventura de Sousa Santos, e o diálogo intercultural, de Joaquin Herrera Flores, o paixão (entre outros valores, tais porquê: clemência, condolência, fraternidade, etc.) seria o topoi geral que poderia fomentar o diálogo inter-religioso porquê princípio para edificar propostas de mediação sociopolítica e econômica, para transformar o mundo em um espaço no qual a igual consideração pelo outro estivesse presente em toda decisão dos Estados, das instituições públicas e privadas, das comunidades e dos indivíduos.
Lembrando que levante outro não se restringe aos seres humanos, mas alcança também os não humanos, a partir do reconhecimento de que a pundonor não é exclusivamente um valor humano, porquê o limitou Kant, mas universal, que alcança todos os seres. Não é uma tarefa fácil a transformação do ser humano em um ser novo no contexto atual, entusiasmado por valores que busquem o muito do outro, que considerem o amar a si mesmo da mesma forma que amar o próximo. E estes não são valores novos, já presentes também em sua vida (mesmo parcialmente) e na da sociedade na qual está inserido.
As religiões não podem se desleixar da sua práxis que deve estar permeada das palavras de seus discursos; e entendemos também que não podem se alongar dos apelos de uma vida digna, justa e pacífica para todos, que, nesta requisito humana, exige não exclusivamente bens espirituais, mas também materiais para sua existência.
Assim, o diálogo inter-religioso, com base nos valores e finalidades que estão presentes univocamente nas diversas religiões, é um instrumento não exclusivamente de prevenção e tratamento de conflitos civilizacionais, mas também de garantia e resguardo dos direitos dos mais pobres, necessitados e excluídos do processo civilizatório, principalmente do ocidental, contribuindo ainda com uma cultura de sossego.
Afirma Hans Küng, na elaboração dos princípios para uma moral global que “não haverá paz entre as nações se não houver paz entre as religiões, e que não haverá paz entre as religiões se não houver diálogo entre elas”; e ainda que “é necessário agregar que este diálogo será inútil, hipócrita e até blasfemo, se não está voltado para a Vida e para os pobres, sobre os direitos humanos, que são divinos também”.
O diálogo inter-religioso não é, em núcleo, uma partilha de dogmas e conhecimentos para o desenvolvimento das religiões, mas tem porquê objetivo principal a valorização da vida humana e não humana, sua interdependência e a promoção dos meios materiais e imateriais (incluindo espirituais) para o pleno desenvolvimento. Devido à urgência vital, com próprio foco nos mais pobres e excluídos dos seres.
Marcus Pinto Aguiar é mediador de conflitos (Nupemec/TJ-CE), jurisperito, doutor em Recta Constitucional com pós-doutorado pela UnB/Flacso Brasil, professor da Faculdade 05 de Julho (F5) e do mestrado em Recta da Ufersa e membro-fundador do Instituto Brasiliano de Direitos Culturais (IBDCUlt).