Ontem, assistindo ao espetáculo de ignorância, soberba e autoritarismo que foi o julgamento que, na prática, institucionaliza a increpação no Brasil, fui tomado por uma avassaladora saudade. Saudade da esquerda caviar. É, aquela mesma que meu companheiro Rodrigo Constantino retratou tão muito num best seller. Aí, tomado por uma espécie de nojo, fui até a estante e peguei o velho e surrado réplica de “À Mão Esquerda”, de Fausto Wolff. Dentro do livro, uma epístola*.
Mozart da favela
Confira:
Do romance, que li no remoto ano de 1996 (ou 1997), não me lembro muito. Mas lembro que tem um quê de autobiográfico e que termina com um argumento em resguardo do socialismo que era risível naquela quadra e que hoje borda o ridículo: o capitalismo malvadão impede que se identifique, no meio de uma favela, um Mozart ou um Picasso.
Ateísmo angustiado
Aí está a núcleo da esquerda caviar. Ou pelo menos de uma secção dela, que condenava a violência e a tirania intrínsecas a qualquer revolução, e buscava obsessivamente uma formosura supostamente sufocada pela avidez numulário. No caso do livro de Fausto Wolff, se me lembro muito e provavelmente não me lembro, essa procura pela formosura estava atrelada a uma sofrida crise existencial e um ateísmo angustiado pela possibilidade da existência de Deus.
Distraídos
Hoje em dia, a esquerda não tem crise existencial alguma. Aliás, a direita tampouco. Distraídos que estamos todos com as intermináveis e insolúveis tretas ideológicas, nos faltam o tédio e o tempo para pensarmos no sentido da vida, no evidente e no inverídico, no verosímil e no profíquo. Assim, por escolha própria, nos tornamos estandartes ambulantes de um ideário que já sai da risco de montagem todo empacotadinho.
Jornalista desempregado
Mas tergiverso e quero recontar a vocês que, mal terminei de ler “À Mão Esquerda”, escrevi uma epístola ao responsável. Uma vez que não usei papel-carbono**, não tenho a menor ideia do que escrevi. Mas Fausto Wolff, que tinha nomeada de mau e inacessível, me respondeu dizendo, entre outras coisas, que era “um simples jornalista desempregado que eventualmente escreve livros. No mais, porrista, velho e não exatamente amado pela grande imprensa”.
Porre de juntar crianças
Depois, ele me fez uns elogios que por naturalidade não vou reproduzir aqui e voltou a reclamar: “Obrigado por ter gostado do ‘Mão’. Pena que ele não existe. Escrevo rápido e à mão porque, além dos casuais problemas financeiros, estou tendo problemas domésticos sérios”. Assim, porquê se eu fosse um companheiro íntimo. E encerrou dizendo que, quando estivesse em Curitiba, tomaríamos “um porre de juntar crianças”.
Assim, à toa
No ano seguinte, Fausto Wolff esteve em Curitiba. Tentei entrevistá-lo, mas não deu evidente. Assim porquê não deu evidente nosso “porre de juntar crianças”. Em 2004, porém, depois de algumas retas e curvas da vida, me vi diante da porta do apartamento dele em Copacabana. Pois é, Fausto Wolff me convidou para o natalício dele – mesmo depois de eu, num cláusula escrito em 2001, tê-lo xingado de “mau-caráter”. Assim, à toa.
Chivas à vontade
Lá dentro encontrei a nata da esquerda caviar, uma roda de queijo parmesão e Chivas à vontade. Infelizmente não me lembro de muita coisa da sarau. Finalmente, o Chivas era mesmo à vontade. Mas me lembro com surpreendente (até para mim!) ternura daqueles velhinhos entoando a “Internacional Socialista” num apartamento de frente para o mar em Copacabana. Havia ali muito muito muito equívoco, muito ego e talvez um libido latente de violência.
Equivalente vegano
Mas havia também um libido sincero de mudar o mundo para melhor e de não, em hipótese alguma, se sujeitar a tiranetes porquê os de hoje. Havia um humanismo ainda razoavelmente puro, ou ao menos não tão corrompido pelo niilismo cínico das últimas décadas. Eram pessoas preocupadas em manter um mínimo de honestidade intelectual e com as quais se podia conversar sem ser xingado de fascista, racista, negacionista ou sei-lá-o-quê-fóbico.
Equivalente vegano
E é justamente isso o que falta à esquerda que hoje trocou o caviar por um equivalente vegano qualquer. Essa esquerda que infesta todas as instituições, do STF ao jornalismo. Uma esquerda que, no fundo, se odeia e odeia o ser humano e odeia a liberdade e odeia a formosura e odeia o paixão e odeia Deus.
Asteriscos
* Uma epístola era um meio rudimentar de notícia escrita que exigia o uso de caneta, papel, envelope, selo e um mica de paciência. Mas quando o carteiro chegava, ah, era só alegria!** Papel carbono era um meio rudimentar de geminação de documentos. Uma espécie de CTRL C + CTRL V analógico e que sujava bastante as mãos.