Nesta quarta-feira, o Supremo Tribunal Federalista começa a estudar duas ações que questionam a constitucionalidade do item 19 do Marco Social da Internet, que trata da responsabilização das empresas de tecnologia, uma vez que as de mídias sociais, por conteúdos publicados por terceiros. A julgar pelo que andam defendendo publicamente o governo federalista e até mesmo alguns ministros do STF, já habituados ao péssimo uso de antecipar suas opiniões sobre temas que a golpe terá de julgar, a liberdade de frase no Brasil, que já vive tempos bastante difíceis, tem tudo para trespassar deste julgamento gravemente prejudicada, para não expor ferida de morte.
A legislação atual, aprovada em 2014, prevê, no caput do item 19, que as empresas só serão responsabilizadas se deixarem de extinguir conteúdos publicados por usuários depois ordem judicial específica para sua remoção. O próprio Marco Social da Internet já prevê duas exceções: violações de direitos autorais (art. 19, parágrafo 2.º) e a violação da intimidade de terceiros com a divulgação de imagens ou vídeos de nudez ou com texto erótico (art. 21) – nesses casos, havendo tal violação, basta a notificação para que a mídia social esteja obrigada a derrubar a publicação, em um protótipo que se convencionou invocar de notice and takedown. A Procuradoria-Universal da República, o governo federalista e os ministros do STF que costumam tratar do tópico publicamente acham que isso é muito pouco. A incerteza diz reverência a qual o caminho que os ministros escolherão.
Ministro do Supremo não escreve ou reescreve leis, ainda que sob o pretexto do “controle de constitucionalidade” – legislar é papel do Legislativo, e que inclusive já está previsto no Marco Social da Internet
E aqui reside o primeiro problema, pois nascente é um debate que, a rigor, nem deveria estar sendo travado no STF. Porquê afirmou, de forma certeira, a Advocacia do Senado, “é certo que a circulação de ideias, notadamente nas plataformas digitais, pode ter a sua regulação aprimorada, notadamente para coibir o exercício abusivo da liberdade de expressão, mas é importante que esse debate ocorra no espaço plural e representativo do parlamento”. Ministro do Supremo não escreve ou reescreve leis, ainda que sob o pretexto do “controle de constitucionalidade” – legislar é papel do Legislativo, e que inclusive já está previsto no Marco Social da Internet. Em março de 2023, os autores da ideia que levaria ao texto legítimo, em item na Folha de S.Paulo, afirmaram que a frase “ressalvadas as disposições legais em contrário”, no caput do item 19, existe justamente para isso: dar ao legislador a chance de aprimorar a legislação à medida que os problemas vão sendo constatados.
Parece-nos, no entanto, altamente improvável que os ministros optem pela autocontenção. E é verosímil prever tal desfecho porque, em ocasiões anteriores, eles já demonstraram sua intenção de restringir a liberdade de frase na internet. Todo o processo iniciado com as decisões abusivas tomadas no contexto de inquéritos uma vez que o das fake news culminou com a Solução 23.732/24 do TSE, adotada em fevereiro deste ano com vistas às eleições municipais de outubro, e que introduziu uma norma totalmente distante do espírito que norteou a geração do Marco Social da Internet. Ao somar o item 9.º-E à Solução 23.610/19, a golpe impôs aos provedores uma prática diametralmente oposta à prevista no Marco Social: o chamado “dever de cuidado”, pelo qual as empresas de mídia social são obrigadas a vigiar os conteúdos publicados e excluir conteúdos por conta própria – dispensando até mesmo a notificação, quanto mais decisão judicial – para evadir da responsabilização judicial.
Com isso, as empresas de mídia não foram transformadas simplesmente em publishers, mas em verdadeiras “polícias do pensamento”. Isso porque os conteúdos que o TSE gostaria de ver banidos foram listados sob as definições-coringa de “discurso de ódio” ou “atos antidemocráticos”, que na prática significam tudo o que um promotor, juiz ou militante desejem que signifique. Em outras palavras, o item 9.º-E zero mais fez que virar o Marco Social da Internet do avesso. E, considerando que a solução teve Cármen Lúcia uma vez que relatora e foi aprovada por unanimidade no plenário do TSE, incluindo mais dois ministros do STF – Alexandre de Moraes, que presidia a golpe eleitoral, e Kassio Nunes Marques –, é verosímil que tal solução já tenha três votos a seu obséquio no julgamento prestes a debutar.
Seja por meio da “polícia de pensamento” criada pelo TSE e que pode ser institucionalizada agora pelo STF, seja por uma solução menos drástica, com uma ampliação das hipóteses de notice and takedown, passando por uma série de outras alternativas intermediárias, é inegável que qualquer mudança feita pelo STF representará uma institucionalização do termo da liberdade de frase no Brasil. Tal cerceamento é plataforma geral das alas ideologizadas do Ministério Público que praticamente exercem militância identitária, e de um governo federalista e um STF incessantemente criticados pelos cidadãos (justa ou injustamente, pouco importa). Que veículos de prelo e outros formadores de opinião comprometidos com a liberdade de frase não estejam percebendo o transe, nem debatendo a fundo as possíveis consequências de cada possibilidade que está na mesa, é um tanto verdadeiramente terrífico, e por isso, à medida que o julgamento for se desenrolando, apresentaremos neste espaço uma estudo mais detalhada do que realmente está em jogo a partir desta quarta-feira.