Foi o sociólogo e historiador Gilberto Freyre quem, em língua portuguesa, primeiro comparou a Igreja Católica a um “grande navio, com séculos de tradição e disciplina, que não pode ser manobrado com a rapidez dos pequenos barcos”. Aos olhos dos críticos, disto decorre parte da dificuldade de comunicação entre o catolicismo e o mundo moderno. De quando em quando, contudo, nomes insuspeitos emergem desta lenta embarcação e se fazem ouvir também em meios seculares, “furando a bolha” da fé católica sem propriamente reformulá-la, lançando mão apenas de seus talentos comunicativos e das novas tecnologias disponíveis.
Assim foi com o arcebispo americano Fulton J. Sheen, premiado em 1952 com o Emmy por seu programa de TV “Life is Worth Living” e conhecido como uma das primeiras celebridades religiosas do século 20; bem como com o papa João Paulo II, o polonês feito bispo de Roma poucos anos antes da criação da internet, que potencializou ainda mais sua já consagrada popularidade midiática. No nível nacional, assim o foi com os padres Marcelo Rossi e Fábio de Melo, e é com o religioso Frei Gilson, com seus mais de 5,4 milhões de seguidores no Instagram e participações recordistas em podcasts seculares. No entanto, levando-se em conta a abrangência da língua inglesa e da influência americana sobre a cultura ocidental, poucos nomes contemporâneos alcançaram tanto destaque quanto o bispo Robert Barron.
Doutor em teologia, mas com linguagem popular
Nascido em Chicago, Barron fez doutorado em teologia pela Universidade de Paris e foi ordenado sacerdote para a Arquidiocese de Chicago em 1986. Lá, ele se destacou como pároco e professor de teologia. Convidado a transmitir suas homilias na rádio WGN – à época, a maior estação da capital de Michigan – no início dos anos 2000, por sugestão de um amigo, passou a disponibilizar os sermões online. Nascia assim o Word on Fire, projeto de comunicação e formação religiosa que hoje abrange canais no YouTube com mais de 1,7 milhão de inscritos, páginas nas principais redes sociais, podcasts, artigos e séries de documentários. Em 2015, já reconhecido por seu trabalho digital, ele foi nomeado pelo Papa Francisco bispo auxiliar de Los Angeles e, em 2022, tornou-se bispo da Diocese de Winona-Rochester, em Minnesota.
Um rápido passeio pela lista de vídeos mais assistidos do canal principal de dom Barron atesta a versatilidade do sacerdote, bem como sua capacidade para tratar com rigor filosófico assuntos candentes da atualidade: às meditações do terço mariano, segue-se um vídeo de cinquenta minutos no qual Barron disseca as filosofias de Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Jean-Paul Sartre, e Michel Foucault, uma profunda discussão moral acerca do casamento entre pessoas do mesmo sexo e reflexões acerca da natureza do mal. Entre os campeões de audiência está ainda o relato inédito da conversão ao catolicismo do ator Shia LaBeouf, a quem Barron ministrou o sacramento do crisma poucos meses depois. A entrevista já foi assistida mais de 2,6 milhões de vezes.
Além do convertido LaBeaouf, no rol de nomes célebres que já marcaram presença na série de entrevistas conduzidas pelo próprio dom Barron estão o psicólogo canadense Jordan Peterson (que já marcou presença em mais de uma ocasião, acompanhado também pela esposa), o cientista político Patrick Deneen – tido como a mente por trás do candidato a vice-presidente dos Estados Unidos, J. D. Vance -, o ator e diretor Ethan Hawke e sua filha, Maya Hawke, o ator e produtor Mark Wahlberg e o ator Jonathan Roumie, intérprete de Cristo na série “The Chosen”. Pela internet, circulam artigos que repercutem os comentários de Barron sobre a letra de “Imagine” – em 2021, o bispo publicou um vídeo intitulado “Why I Hate John Lennon’s ‘Imagine’” – e sobre a recente propaganda da Apple na qual a atriz Octavia Spencer representa uma furiosa Mãe Natureza a clamar pelo cumprimento da Agenda 2030 da ONU.
Em que pese a baixa qualidade que tende a marcar as produções religiosas diocesanas e a dificuldade de se lançar pontes entre o cristianismo e a cultura contemporânea sem apelar para lugares-comuns, o Word on Fire – para não dizer o próprio dom Barron – é um verdadeiro “milagre” da comunicação religiosa atual. “A principal chave interpretativa do trabalho de dom Barron é o diálogo entre a tradição e o mundo moderno, amparado por uma sólida formação teológica. O fato de ele ter vasto conhecimento acadêmico e estar verdadeiramente conectado com as questões que os jovens adultos de fato têm faz com que ele consiga dialogar com a cultura pop sem ser de forma superficial”, avalia o professor de filosofia Gabriel deVitto.
Fulton Sheen como modelo
A proeminência do trabalho do bispo Robert Barron é tamanha que a comparação com o bispo Fulton Sheen é unânime entre teólogos e comentaristas. “Eles têm em comum o fato de serem pioneiros da comunicação católica de sucesso em novas mídias – Barron no YouTube e Sheen na TV. Barron, contudo, parece muito mais aberto à modernidade – a postura de Fulton Sheen tendia a ser muito mais crítica”, pontua de Vitto. Com efeito, um dos méritos do bispo de Winona-Rochester é sua diplomacia assertiva: Barron dialoga tanto com think-tanks cristãos liberais, como é o caso do Acton Institute, quanto com os “iliberais” da ala de Deneen – dois grupos que, inclusive, já trocaram farpas em público -, além de tecer duras críticas à cultura woke e a outras perversões contemporâneas sem lançar mão de jargões ideológicos. Uma combinação de talento e preparo que rende frutos fora das telas: além das ordenações, nos últimos anos, dom Barron tem sido ouvido nas principais comissões episcopais nos Estados Unidos, na Inglaterra e até no Vaticano: há poucos dias, ele marcou presença no polêmico Sínodo da Sinodalidade, alvo de grande desconfiança por parte das alas mais conservadoras do catolicismo.
“Não é intuitivo que um bispo tenha tanta relevância cultural. Estamos acostumados a vê-los quase como gestores. Barron é ciente disso, e explicita sua crença de que o magistério episcopal se realiza no exercício da docência, da pregação e no contato com seus fiéis”, acrescenta deVitto. Em tempos nos quais a Cristandade – nas Américas, sobretudo – amarga em meio à polarização, é, de fato, auspicioso que surjam líderes capazes de estabelecer pontes reais com um mundo em transformação. Que este exemplo venha do alto escalão da igreja é ainda melhor.